São Paulo, quinta-feira, 28 de setembro de 2006
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

criança

Tem que ter limite

Baixas no sistema imunológico (com infecções recorrentes), sintomas como irritabilidade e insônia, dores crônicas e lesões na pele podem ser sinais de "overtraining" infantil

PRISCILA PASTRE ROSSI
TATIANA DINIZ
DA REPORTAGEM LOCAL

Segundas e quartas, natação e capoeira; terças e quintas, futebol; sábados, ginástica olímpica; domingos, aulas de circo. Que o exercício beneficia as crianças, não há dúvidas. Mas onde é a linha de chegada?
Hoje, especialistas se debruçam sobre a intensidade ideal da atividade física nessa fase. O excesso pode ser danoso: baixas no sistema imunológico, com infecções recorrentes, distúrbios de comportamento como irritabilidade e insônia, dores crônicas na musculatura e nas articulações e lesões na pele podem ser sinais de "overtraining" infantil, alertam.
"Nas crianças, os sinais do treinamento excessivo são sutis e pedem atenção. Elas têm menos percepção do corpo que os adultos", explica Márcio Tannure, ortopedista, ortomolecular e médico do Clube de Regatas Flamengo.
Segundo Tannure, o "overtraining" mirim desencadeia ainda quedas de testosterona, retardando a puberdade, e reduz o nível de glutamina no sangue. "A glutamina é um aminoácido que, com as vitaminas C e E, o zinco e o selênio, atua como fonte de energia para o funcionamento do sistema imunológico. Sem ela, a criança fica mais vulnerável a quadros recorrentes de virose", diz.
Com a variável da intensidade entrando na equação do exercício na infância, a máxima de que "quem faz esporte cresce mais" deixa de ser consenso. Na verdade, abusar das atividades de impacto pode gerar deficiências de crescimento.
"Os ossos crescem através de discos de cartilagem próximos às suas extremidades -as chamadas placas de crescimento ou fises. Se essas estruturas sofrem impactos decorrentes de exercícios exagerados, repetitivos ou com sobrecarga, pode ocorrer a desaceleração do crescimento ósseo", diz José Antonio Pinto, ortopedista-pediatra do Hospital Santa Marina, em São Paulo.
A freqüência de prática segura envolve fatores estruturais, endócrinos e genéticos que interferem na resistência a impactos da placa de crescimento.
"Entretanto, sabe-se por estudos com ressonância magnética que fazer exercícios por mais de 15 horas por semana acarreta fenômenos degenerativos nos discos intervertebrais de atletas mirins de ginástica olímpica e que praticantes de esportes de arremesso, como o beisebol, podem sofrer descolamentos das placas de crescimento quando excedem três horas de treino diário", exemplifica o especialista.
Para o cardiologista e pediatra José Rubens de Alcântara Madureira, do hospital infantil Pequeno Príncipe, em Curitiba, dois itens precisam ser avaliados: o tempo médio gasto nas atividades e a intensidade, medida pela freqüência cardíaca. "Quando a atividade eleva acima de 80% a freqüência cardíaca máxima da criança, pode levá-la ao "overtraining"."
A musculação é contra-indicada na infância, e sua introdução deve ser cautelosa. "Até que o corpo complete todo o processo de maturação biológica (entre 12 e 16 anos), a musculação está proibida", diz Mário Bracco, pediatra e pesquisador em ciências do esporte e da atividade física da Universidade Federal de São Paulo.
Úrsula Metelmann, da Sociedade Brasileira de Dermatologia, revela que o "overtraining" também deixa marcas na pele, principalmente entre os nadadores. "Podem ocorrer ressecamento e desidratação da pele, além de micoses nas unhas."
Márcio Tannure recomenda aos pais atenção redobrada às queixas de dor. "É um alarme importante", enfatiza. Sinal evidente de exagero, o aparecimento de dores crônicas chega a impedir os movimentos.
Depois de meses se queixando de incômodos sem suspender os treinos de futebol, Adryan Tavares, 12, está com o pé imobilizado há mais de um mês. O diagnóstico: fratura por estresse causado por excesso de treinamento. Depois de recuperado, terá de reduzir a intensidade dos treinos e mesclá-los com a prática de tênis, por recomendação médica.
Campeão de popularidade entre as meninas, o balé clássico ganhou fama de "doloroso". Professora da modalidade há 30 anos, a bailarina Diana Osca Felez desmente a idéia. "Até os sete anos, não há por que a criança se queixar de dor. Depois, com a intensificação dos exercícios, podem ocorrer dores suaves na musculatura."
Diana alerta para os riscos da introdução precoce da sapatilha de ponta. "Para usá-la, a criança precisa ter consciência corporal, força muscular e boa sustentação. Antes da hora, traz problemas sérios nos joelhos e nos tornozelos." Ela também não defende a iniciação no balé antes dos cinco anos. "Até aí, a criança não tem coordenação motora para atender a vários comandos", explica.
As lesões mais freqüentes nas crianças vítimas de "overtraining" são as dos ossos e dos músculos. Vão de macrotraumas (fraturas, torções, luxações, distensões) a microtraumas (inflamações na cartilagem de crescimento e no tecido ósseo, nas extremidades de ossos longos, como fêmur e tíbia). "Dores no joelho são as mais comuns", diz o ortopediatra Henrique Fialho, da Unifesp.
Quando a dor chega, é hora de parar. O repouso é fundamental, mas em casos mais graves pode haver necessidade de imobilização e fisioterapia. Mesmo em um programa de exercícios adequado, os ortopedistas recomendam a utilização de aliados que diminuam o risco de uma lesão óssea, como tênis adequados, proteção para cotovelo, joelho, pulso e ombro, dependendo da atividade.

Competição precoce
Vitória ou derrota. De acordo com os especialistas ouvidos pela Folha, a competição não deve ser introduzida antes dos 11 anos. "Não há maturidade emocional para lidar com a idéia de primeiro, segundo e último colocados", afirma Anna Rozov, gerente de esportes e lutas da Cia Athletica, em São Paulo. Para essa faixa etária, a academia realiza festivais desportivos em que todos os participantes são premiados.
"A solicitação por resultados de pais e professores gera sobrecarga e leva muitos a abandonar a atividade física até os 15 anos", observa o personal trainer Luís Otávio Moscatello, que desenvolve programas para crianças. Dos três aos seis anos, ele recomenda que a criança experimente muitas opções de atividade física. "É bom para aumentar o seu repertório motor e para que ela descubra do que gosta. A especialização precoce em um esporte deve ser evitada."
Para essa faixa etária, algumas academias estão criando atividades específicas, que recorrem a elementos lúdicos. No Rio, a Estação do Corpo lançou, no mês passado, aulas de desenvolvimento psicomotor direcionado a crianças de três a sete anos.
Giovana Saram tem cinco anos e sabe, na ponta da língua, o esporte que gosta mais de fazer: "Natação". Além de nadar, ela faz capoeira, balé e aulas de circo."Se ela será atleta ou não, não importa. Agora, o esporte a ajuda, aumenta a concentração na escola, e ela come e dorme melhor", conta a mãe, a professora Grasiele Saram, 28.
A agenda cheia não tem de ser sempre cumprida à risca pela menina. "Se ela reclama de cansaço, se o dia está muito poluído ou frio, não mando, não forço. Só não vale deixar de ir porque está com sono ou quer ver TV", afirma Grasiele.

Esporte por prazer
A administradora Lucile Santi, 51, mãe de Giulia Haddad, de seis anos, fica atenta ao prazer que a filha tem em fazer ginástica olímpica e patinação artística alternadamente, de terça a sexta-feira.
"Acho que quatro dias de atividade por semana já está bom. Mais que isso seria pesado demais. Ela mesma escolheu as atividades, faz o que gosta e não costuma faltar", afirma Lucile, que também praticou patinação artística na infância e hoje dá aulas dessa modalidade na Sociedade Esportiva Palmeiras, em São Paulo.
Nas crianças obesas, as conseqüências do "overtraining" são ainda mais perigosas. "A possibilidade de lesão ortopédica é maior, e elas estão mais propensas a ter hipertensão", diz Paulo César Alves da Silva, pediatra e endocrinologista do Hospital Infantil Joana de Gusmão, em Florianópolis.
Durante uma atividade intensa, ela tem mais chances de ter elevação da pressão arterial, alteração cardíaca e na circulação, além de problemas na oxigenação cerebral. Uma boa opção é começar pela natação, que diminui o excesso de peso sem forçar as articulações.

Risco para o coração
Outros perigos do exercício exagerado moram no coração. "As crianças podem ter arritmias ou até problemas fatais, no caso daquelas que têm complicação cardiovascular -quadro não raramente desconhecido pelos pais", diz Madureira. Ele defende a realização de exames antes de matricular a criança em qualquer atividade física mesmo que, aparentemente, os exercícios escolhidos não tenham características extenuantes ou de impacto.
Na consulta ao pediatra, por exemplo, vale pedir para que ele meça a pressão da criança, para avaliar possíveis casos de hipertensão. No cardiologista, o eletrocardiograma mostrará o ritmo do coração, detectando casos de taquicardia (aceleração do coração). Já o ecocardiograma revelará a estrutura do coração, detectando hipertrofias e a possibilidade de a criança ter uma doença congênita.
Não sobrecarregar os atletas mirins não significa privá-los dos exercícios. Se adequados e aliados à boa alimentação, eles auxiliam no crescimento e desenvolvem a agilidade, os movimentos, a postura e a força muscular. Além disso, a infância é o melhor momento para despertar o gosto pela atividade física em oposição ao sedentarismo no futuro. Crianças ativas tendem a ser adultos ativos e, conseqüentemente, a levar uma vida mais saudável.


Texto Anterior: Neurociência: Casamento e longevidade
Próximo Texto: Entrevista: Viciados em ações
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.