São Paulo, quinta-feira, 29 de setembro de 2005
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Outras idéias

Anna Veronica Mautner

Novas leis e pecados renovados

Preceitos religiosos mesclam-se com as regras de sociabilidade e com as leis, transformando-se em regras de bem viver. Hoje tanto religiosos como piedosos ou incréus orientam-se, em parte, pelos Mandamentos. Evitam, mesmo sem medo do inferno, praticar qualquer pecado capital.


A vaidade é, quem sabe, a mais forte autoridade a nos reger, uma vez que as instituições que já nos comandaram tornam -se inoperantes


Já vai longe o tempo em que eu, em minha inocência, achava que todo pecado era pecado a pagar a preços fixos por cada transgressão. Nessa altura da minha vida eu sei que, assim como existem leis que não são feitas para serem cumpridas, existem pecados que, às vezes, não são para serem levados a sério.
Quer um exemplo? Atualmente, ser guloso pega mal. Além de pecado, hoje a gula é uma afronta para todos. O guloso é o que não se cuida, que não tem força de vontade, que é incontido. E hoje, mais do que a própria gula, qualquer incontinência virou erro mortal. A preguiça já foi privilégio dos que podiam exercê-la. Hoje ela não é permitida em nenhum aspecto da vida.
Conter-se, exercitar-se, trabalhar e mesmo divertir-se virou dever. É proibido encostar no barranco para ver a vida passar. Quanto mais autônomos nos tornamos, mais dependemos do nosso autocontrole.
Vejamos o que aconteceu com a luxúria, que já foi até nome feio, que não se dizia em lugar sério. Se existia uma coisa que na minha infância não devia ser expressa em público, era todo e qualquer sinal de excitação sexual. Agora é até legal os apaixonados mostrarem sua paixão.
Nem pega bem jovens namorados, noivos ou casados mostrarem-se muito contidos. Dá a impressão de haver algo de errado. Sexo tornou-se dever. Vemos que até nome feio virou dever, enquanto, no que toca ao desejo de comer, a proibição vai ficando cada vez mais severa. Dando tratos à bola (jeito velho de falar!), vemos que, no fundo, gula e luxúria estão ligadas entre si. A modernidade está mais voltada ao desejo sexual, que nos obriga a ser atraentes, caso contrário não despertamos desejo, e isso é mortal para a tal da auto-estima. Diz-se que a gordura pode ser vista como uma defesa para quem tem problemas sexuais. Correto, hoje, é apreciar a boa mesa sem ser guloso, ser sensual sem ser inconveniente, ser altivo sem ofender com a soberba. Não se pode ser "workaholic" nem ocioso. O desejo deve ser intenso sem abandonar a ternura. O casal ideal é aquele em que ambos têm vida própria sem deixar de ser disponível para o companheiro. Difícil, não é? Alguns pecados, como vimos, afrouxam-se, enquanto outros são mais exigidos, e outros se complicam.
Mais um exemplo: a pobre avareza, da qual quase ninguém hoje fala, já foi figura central de romances e tragédias clássicas. A publicidade, o consumismo, a luta por status quase que provocam a extinção dessa tão nobre figura.
A inveja está solta por aí, mas é cada vez menos aceita e não é difícil entender por que: num mundo onde "ter" é "ser", a sua presença lembra do que nós não temos, e não ter dói. A ira continua existindo bem contida. Neste mundo superpovoado, explosões de ira criam problemas, mas contra elas tomamos pílulas. A ira foi engolida pela medicina, é controlada por calmantes, antidistônicos e terapias alternativas.
Finalmente a vaidade, que, se for pecado, é o pecado do mundo. É, talvez, a viga mestra de todos os outros. Por vaidade contemos a gula. Por vaidade queremos ser objetos universais de desejo. É a vaidade que não nos deixa mostrar falta, fraqueza, inibição -incontinências em geral. Se somos o que temos, também somos o que aparentamos e também aquilo que produzimos.
A vaidade é, quem sabe, a mais forte autoridade a nos reger, uma vez que as instituições que já nos comandaram tornam-se inoperantes. Quem mais, se não eu mesmo, vítima da minha própria vaidade, vai cuidar de não pecar/errar? E, quando não consigo, recorro ao mais terrível, que é o aparentar: a soberba. Eta recursinho ruim! É tiro no próprio pé.
E o mundo vai mudando de pecado a crime, de crime a transgressão, e nós esperando pílulas para tudo isso!

ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
@ - amautner@uol.com.br



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