São Paulo, quinta-feira, 31 de agosto de 2006
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Outras idéias

Michael Kepp

Adoecer no Brasil

Adoecer deixa a pessoa em desvantagem, ainda mais num país estrangeiro. O Brasil compensa o prejuízo com a boa vontade do povo na hora de ajudar desconhecidos. Sua natureza afetuosa, produto de uma generosidade "sui generis", é uma descoberta que muitos gringos fizeram antes de mim.
Em 1951, a poeta americana Elizabeth Bishop chegou sozinha a Santos, onde ficou gravemente doente por causa de alergia a caju. Lota de Macedo Soares, uma aristocrata carioca que Bishop mal conhecia, a convidou para se recuperar em sua casa de Petrópolis e passou meses cuidando de sua reabilitação. As duas se apaixonaram e ficaram juntas por 16 anos.
"Ficar doente no Brasil é outra coisa!", Bishop disse à amiga americana e médica Anny Baumann. Soares também ajudou Bishop a se tratar de alcoolismo, asma e depressão crônica. Em uma carta a Baumann, ela diz que aqueles cuidados a faziam sentir que "morrera e fora para o céu sem merecer".
Eu também me sinto assim aqui. Uma vez, em Recife, uma crise estomacal transformou minha barriga numa bola gigante. Já que um amigo carioca me dera o nome de um médico lá, liguei para perguntar que remédio ele me prescreveria. Ele ignorou meus pedidos para que não viesse me examinar, diagnosticou uma gastrite grave e dirigiu até a farmácia para comprar o remédio. Só depois descobri que aquele estranho saíra da própria festa de aniversário para me atender.
Em estradas brasileiras, um verdadeiro exército da salvação também resgatava meu parceiro, um Fusca 1970, recarregando suas baterias e religando o motor. E os "soldados" se recusavam a receber. Uma vez, o carro de um amigo quebrou, e o mecânico que o rebocou até a oficina emprestou o próprio carro para que não se atrasasse para um compromisso a 80 km.
Agentes de viagem brasileiros também se desdobram para ajudar. Ao saber que fiquei com fortes dores lombares por causa de um colchão mole no início de uma viagem de 20 dias pelo sertão, uma agente de viagem reservou, nas pousadas seguintes, quartos com colchões ortopédicos. No ano passado, outra agente de viagem carioca se assegurou de que minha pousada em Cuzco tivesse tanques de oxigênio e pediu a um amigo que me visitasse para ter certeza de que eu estava bem.
Agentes de viagem americanos ficam anos-luz atrás em atenção porque nunca ultrapassam a linha entre o serviço profissional e o personalizado, que exige tempo. Só numa sociedade que valoriza menos o tempo se encontram os cuidados que fizeram Bishop ficar tantos anos e me convenceram a nunca mais partir.


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 24 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br


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