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Opinião

A utopia da comida sadia para todos

CARLOS ALBERTO DÓRIA ESPECIAL PARA A FOLHA

Palavras como "orgânico", "bio" e "natural" parecem guias seguros desde os anos 1980, quando a confiança na indústria alimentar de tipo fordista foi comprometida no episódio da "vaca louca". Expressam a recusa a um mundo de mentiras do marketing.

No entanto, o sentido original deriva da ideia de um nutricionismo virtuoso propagada no fim do século 19, quando se descobre a importância de matérias orgânicas no processo agrícola, dando origem também ao mercado de fertilizantes artificiais.

Mais tarde, Rudolf Steiner (1861-1925) formula as noções de uma agricultura biodinâmica, conferindo sentido moral ao embate entre agricultura "natural" e "artificial".

Por mais que esse discurso soe religioso, o recente hambúrguer de carne de cavalo revelou como a indústria nos ludibria e os governos são coniventes, mostrando como o único caminho é cair fora e reforçar vias alternativas.

Acontece que esse mundo não está ao alcance de quem vive em metrópoles, alimentando utopias como a de hortas urbanas comunitárias. Para fritar berinjela "orgânica" precisamos escolher o óleo com menor teor de gorduras saturadas. O de canola é alardeado assim. Parece sair de uma florzinha inocente, mas canola é sigla de um produto feito da colza transgênica.

É impossível que nos esclareçamos em um mundo que produz milhares de produtos novos todos os anos, identificados por etiquetas que nada dizem de útil. Há sempre um deficit de informação contra o consumidor, que navega no escuro, levado pelo vento das boas intenções.

Estima-se que existam no mundo mais de 1,2 milhão de produtores "orgânicos", cujos produtos são consumidos em 97% na Europa e nos EUA.

Os supermercados não poderiam ignorar algo desse tamanho. Assim, a linha "orgânica" ganhou cidadania no "mainstream", apoiada na vaga noção do consumidor "reflexivo", apontado como alguém instruído e de renda alta, disposto a pagar mais.

Esse nicho está longe de ser a alavanca crítica capaz de transformar o mercado alimentar, de exigir o controle de organismos geneticamente modificados, de pesticidas e o fim de acidentes como o da "vaca louca".

Essas coisas dizem respeito à saúde pública e põem em questão a eficácia política de quem luta por alimentação sadia. Não se pode admitir que o mercado ofereça coisas sadias e coisas contaminadas, lado a lado nas gôndolas, com uma vantagem de preços para os produtos do agronegócio contaminante.

Contudo, o que prospera é a opção pela produção local, politica e nutricionalmente correta, mas de baixo impacto nas estruturas de poder que regem a produção das grandes massas urbanas.

Os grandes chefs têm sinalizado as possibilidades de uma alimentação de qualidade, inclusive baseada na incorporação de plantas não convencionais. Involuntariamente, eles reforçam a crítica ao estilo fordista de agronegócio. Mas são incapazes de liderar um novo modelo de produção, que escapa ao escopo dos restaurantes.

Com consumidores "conscientes", mas passivos, governos cúmplices do agronegócio e utopistas de toda espécie, que forças impulsionarão a mudança da indústria em direção à qualidade?

Justamente por não parecer haver saída é que as utopias estacionam no nível das escolhas individuais que são, por definição, egoístas.

Antropólogos mostram como a angústia alimentar produz essas visagens modernas: dieta mediterrânea, comida orgânica etc. Ideias de saúde (e de imortalidade) governam os homens numa sociedade na qual seus corpos são alocados como força produtiva por tempo determinado.

Daí a eficácia das estratégias escapistas; daí a necessidade de se compreender que é preciso um novo padrão de vida coletiva que inclua o controle da indústria alimentar. Talvez as palavras-chave sejam "vigilância" e "denúncia", mais do que "orgânico" e "escolha".


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