Índice geral Especial
Especial
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Depoimento - Fernando Rodrigues

Cúpula aconteceu sob telhas de amianto e ninguém sabia o que era 'ONG'

A julgar pelos títulos de 20 anos atrás, os jornais de hoje correm grande risco de praticar autoplágio ao cobrir a Rio+20

O que mais me chamava a atenção no Rio há 20 anos eram algumas ruas limpas e esvaziadas para a passagem de comboios com autoridades estrangeiras. A prefeitura gastou US$ 1 bilhão para embelezar a cidade, que teve 360 mil buracos tapados e 600 km de ruas recapeadas.

A pobreza ficou menos aparente. A média diária de mendigos recolhidos a abrigos pulou de 1.500 para 3.000. Era outro Rio de Janeiro, Estado governado por Leonel Brizola (1922-2004). Parece que faz um século.

A segurança era máxima. Em muitas esquinas havia soldados, portando metralhadoras. Nos entroncamentos mais importantes, tanques de guerra faziam parte da paisagem. No topo deles sempre havia um soldado só com a cabeça de fora, de capacete, como se esperasse um ataque a qualquer instante.

Esse grande aparato militar talvez seja a maior diferença imagética da Eco-92 para a Rio+20. Agora não haverá tanques nas ruas.

De maneira geral, houve inúmeros avanços tecnológicos (câmeras monitoram partes da cidade em tempo real). O Brasil e o Rio passam por um momento político-econômico mais confortável. O país já absorveu uma certa "cultura" sobre o ambiente.

Durante a Eco-92, o Brasil e os brasileiros eram neófitos quando o tema era a preservação do planeta. Algumas palavras começavam a ficar mais populares. Apareciam nos telejornais. Ganhavam sentidos diversos na bem-humorada gíria carioca. Biodiversidade, publicou a Folha, não era mais apenas a variedade dos seres vivos. A proprietária de uma loja de sucos no local do evento explicava assim seus produtos: "Queríamos fazer alguma coisa de biodiversidade, com grande variedade de frutas".

Jornais se referiam a ONGs por extenso: "organização não governamental". Havia até explicação sobre pronúncia: podia ser "ongue", ou soletrando, "ó-ene-gê".

Apesar de ser inverno, a temperatura na conferência era sempre alta por causa das telhas de amianto que cobriam o local.

Fernando Gabeira, ativista a favor do ambiente, repórter da Folha na Eco-92, notou como era "politicamente incorreto" fazer uma conferência sobre proteção do planeta num ambiente coberto por um material proibido em muitos países por ser considerado cancerígeno. Ainda assim, escreveu Gabeira, "a única preocupação era com o calor do inverno brasileiro, capaz de confirmar as projeções apocalípticas do efeito estufa".

COLLOR E CACHOEIRA

Essa preocupação com temas laterais ao evento continua a existir. Há 20 anos, na semana em que teve início a Eco-92 foi instalada a CPI do Collorgate, que resultou no impeachment do então presidente, Fernando Collor de Mello. Infeliz na política, mas craque no marketing, Collor transferiu seu governo, com ministros a tiracolo, para o Rio por alguns dias.

Agora, há outra rumorosa investigação sobre os negócios de Carlinhos Cachoeira com políticos de vários partidos, todos suspeitos de envolvimento com lavagem de dinheiro e jogo ilegal.

Outra similaridade inescapável era o ceticismo sobre resultados da Eco-92. Idêntico ao atual. Eis títulos de reportagens daquele ano: "Conflito sobre ecologia e recessão polariza debate no Rio", "Grupo dos ricos chega rachado aos debates da Cúpula da Terra" e "Governos ainda desprezam alerta de cientistas sobre o efeito estufa".

A julgar pelos títulos de 20 anos atrás, os jornais de hoje correm grande risco de praticar autoplágio ao publicar notícias sobre a Rio+20.

JURUNA E PAIAKAN

Havia também dificuldade para fazer com que o noticiário árido sobre os acordos negociados na Eco-92 vencesse a disputa por espaço com outros temas de apelo mais pop.

O dalai-lama veio ao pré-encontro, da sociedade civil, antes daquela conferência. Sua importância para salvar o planeta do aquecimento era perto de zero. Mas abriu-se uma pendenga diplomática.

A delegação da China só aceitava participar depois que o dalai-lama deixasse o solo brasileiro. O Itamaraty se esfalfou até conseguir sincronizar a saída de um para a chegada dos demais.

Quando se analisa esse episódio hoje, percebe-se que a importância era pequena. Mas exigiu muito suor da diplomacia local e ocupou espaço na mídia -em detrimento de assuntos diretamente relacionados aos acordos que eram negociados.

Para azar da depauperada imagem do país e do desespero dos organizadores brasileiros, estourou em 1992 um escândalo envolvendo o índio Paulinho Paiakan. Ele era acusado de estuprar e torturar uma estudante de 18 anos.

Enquanto isso, nos corredores do Riocentro apareceu outro índio, Mário Juruna, que antes havia sido deputado. Seu objetivo era um só: vender a pele de onça que levava para cima e para baixo.

Sob as telhas de amianto do Riocentro, tecnologia era algo ainda distante em 1992. A estatal de telefonia Telerj anunciou investimento de US$ 15 milhões para melhorar as telecomunicações da cidade. Mas foram instaladas apenas 3.000 linhas fixas e 1.100 celulares. Para a empresa, tratava-se de "um serviço de Primeiro Mundo".

Não era de Primeiro Mundo. Ainda assim, a Eco-92 não foi um fracasso total, mas ficou longe de ser um sucesso. Mais ou menos como deve ocorrer com a Rio+20.

-

A CONFERÊNCIA NA WEB

Siga a cobertura da Rio+20 na página especial folha.com/riomais20 e no blog folha.com/entrecolchetes, de Claudio Angelo. O site traz reportagens sobre o encontro no Rio, a programação e a localização dos eventos oficiais e paralelos na cidade, fotos, teste de conhecimentos e a cronologia ilustrada das principais mudanças pelas quais o mundo passou de 1992 até hoje.

ACERVO FOLHA

Leia reportagens sobre a Eco-92, publicadas na em junho daquele ano, e a cobertura da Rio+10, realizada na África do Sul, em agosto de 2002.

acervo.folha.com.br

FERNANDO RODRIGUES é repórter da Sucursal de Brasília e integrou a equipe que fez a cobertura da Eco-92.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.