São Paulo, 20 de outubro de 1999


Projeto usa latas para
combater violência

da Reportagem Local

Em vez de tiros, batidas na lata. Parece maluca, mas essa troca vem dando certo no Jardim Ângela. As latas são batidas pelo Timbalata, um projeto musical que reúne 160 crianças e adolescentes e 80 bailarinas, as Timbaletes. A música funciona como aglutinador de um projeto ramificado em curso gratuito pré-vestibular, aulas de dança, capoeira, teatro, canto e artesanato.
"A idéia é promover a educação pela arte e a organização da vida a partir de coisas que a gente gosta: dançar, cantar, batucar", resume Israel Nascimento Cruz, 30, um dos coordenadores da ONG Cio da Terra, da qual o projeto Timbalata é o filhote mais visível.
O sucesso da empreitada é impressionante para uma terra devastada como o Jardim Ângela. Fundada em março do ano passado, a ONG já implantou seus cursos em dez escolas e atinge 1.300 crianças e adolescentes. O nome Timbalata é uma alusão óbvia ao Timbalada, grupo baiano criado por Carlinhos Brown em Salvador, que combina música e preocupações comunitárias. Cruz "espelhou-se" também no Olodum e no Funk'n'Lata, grupo do morro da Mangueira, no Rio.
A diferença do Timbalata e seus congêneres é a ênfase no combate à violência. Mas o que pode a música contra tiros? Responde Cruz: ""Nossa vontade é aproximar as pessoas pela música e desarmar os espíritos pela conversa".
Pode parecer mais um palavreado vazio, mas ele aponta exemplos concretos. Antes do Timbalata, moradores do Jardim Copacabana e do Jardim Tupi, que integram o subdistrito Jardim Ângela, não podiam sair de seus bairros. O clima entre os traficantes era de guerra. Se um cruzasse a fronteira do outro, podia morrer, segundo Cruz.
Depois do Timbalata, a fronteira desintegrou-se. Cruz funciona como aproximador de desafetos. Sua maior vitória foi colocar para dançar, lado a lado, dois líderes de gangues rivais. "Os caras das gangues sempre chegam quietos e ficam num canto. Vou lá e converso com o camarada. A mim, eles respeitam porque conheço música. Me chamam de professor. Mostro que ele tem algo a ensinar para nós e ele se integra."
O "algo bom a ensinar" é a viga-mestra dos projetos do Cio da Terra. "Sempre achei que qualquer um, por mais pobre que seja, sempre tem alguma habilidade para mostrar. O Cio da Terra valoriza a habilidade dessa pessoa, seja na música ou na capoeira. Quando ele descobre que é bom em algo, tudo muda: ela passa a ser um espelho num local onde quase não há bons exemplos. Nossa idéia é multiplicar esses espelhos", relata.
O melhor exemplo da teoria dos espelhos de Cruz talvez seja o curso pré-vestibular gratuito. Começou na casa dele com seis alunos e ao final do ano eram dez. Deles, oito passaram no vestibular. O curso saiu da casa e hoje funciona aos sábados na Escola Municipal Oliveira Viana. Todos os professores são voluntários. Neste ano, tem 78 alunos. Só não tem mais porque não cabem na sala: 180 adolescentes se inscreveram.
O número se multiplicou rapidamente porque Cruz provou que podia romper a barreira da pobreza: foi à Unisa (Universidade Santo Amaro) e convenceu o reitor a dar bolsa aos alunos. O reitor topou que os alunos trabalhassem para a universidade. Hoje, a Unisa fornece professores para o curso pré-vestibular.
"A coisa aqui funciona porque não desprezamos a cultura do pessoal e nunca deixamos o prazer de lado", diz Cruz.
O som tocado pelo Timbalata é exemplo de como a cultura local é prezada. Mistura raps dos Racionais MCs ("Diário de um Detento" e "Homem na Estrada"), com músicas de Caetano Veloso ("Tieta") e Olodum ("Revolta Olodum"). Cerca de 80% do repertório, porém, é do pessoal do bairro.
O sucesso do Cio da Terra foi tão fulminante que já conseguiram apoio de duas secretarias do Estado: da Cultura e da Justiça. A Cultura paga os salários de três monitores: cada um recebe R$ 360 mensais. A Secretaria da Justiça escolheu a ONG como parceira para o serviço civil voluntário, que substitui o serviço militar.

 


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