São Paulo, 27 de outubro de 1999


Salas de aula devem ser
usadas para convivência


do Conselho Editorial

O Liceu de Artes e Ofício, da Bahia, recolhia parte de sua renda consertando carteiras escolares, destruídas pelos alunos. A cada mês, chegavam à marcenaria caminhões e mais caminhões com restos de mesas e cadeiras.
Investindo contra sua própria fonte de renda, o Liceu, apoiado pela Secretaria Estadual da Educação, criou com artistas profissionais uma peça de teatro para convencer os alunos a respeitar a escola, ensiná-los o valor não apenas do saber da coisa pública.
Para montar o espetáculo, eles investigaram a percepção dos estudantes. Promoveram oficinas em que os alunos quebravam as cadeiras e diziam o que lhes passava pela cabeça.
As frases soltas durante a quebradeira desnudavam o ressentimento com a escola em que falta quase tudo _ de professor a giz, num espaço que reforça a sensação de marginalidade.
Mas logo ficaria nítido que os alunos viam nas carteiras um jeito de descontar os vários ressentimentos, moldados em diferentes graus de violência vivida fora da escola _a violência da falta de lazer, do desemprego, dos pais separados, muitos viciados em bebida, da selvageria doméstica, da droga, dos assaltos.
Dessas oficinas surgiu, em 1995, “Cuida Bem de Mim”, encenada para os alunos baianos; para a imensa maioria deles, era a primeira vez que iam a um teatro. A cadeira transformou-se, ali, não na questão central, como se planejava, mas apenas em um símbolo, uma síntese.
As platéias acompanham silenciosas e emocionadas sua própria vida no palco, rindo, chorando, gritando.
Em pouco tempo, começou a diminuir o número de carteiras destruídas. A peça fez o aluno perceber que não seria ali, na escola, que resolveriam seus ressentimentos _justamente a escola deveria ser o espaço para construção de perspectiva.
O roteiro de “Cuida Bem de Mim” serve para entender a violência nas escolas, um tema que entrou na agenda brasileira, com o registro, em todo país, de cenas de vandalismo, brigas entre alunos, o tráfico de drogas em sala de aula, professores ameaçados, prédios destruídos.
Até pouco tempo, violência nas escolas era assunto, aparentemente, restrito a paisagem dos bairros pobres das grandes cidades americanas, onde se instalaram detectores de metais para investigar as mochilas dos alunos; as gangues, muitas vezes, resolviam suas diferenças no pátio ou nos corredores.
Tanto nos EUA como aqui ocorria apenas o óbvio e previsível: a escola não é uma ilha de paz, capaz de conter a violência a seu redor. E, muitas vezes, ela apenas reforça a sensação de marginalidade, gerando ainda mais ressentimento.
Rapidamente foram se disseminando experiências nos EUA, baseada no óbvio _além de trabalhar o aluno dentro da escola, deveriam trabalhar além dos muros, atraindo a família, num envolvimento da comunidade.
Comunidade, além das famílias, significaria empresários capazes de fazer doações, líderes religiosos, com seu poder de mobilização, associações de voluntários, faculdades que treinassem os professores, produzissem material didático, repensassem o currículo, associações que ajudassem a lidar com o abuso de álcool. Significaria também acordos com a polícia, criando um policial habilitado a lidar com o ambiente escolar.
Numa escola do bairro do Harlem, em Nova York, um voluntário mestre em caratê se dispôs a ensinar lutar marciais. E atraiu integrantes de gangues, interessados em derrotar seus rivais.
O professor foi, aos poucos, treinando-os para entender o que era, de fato, força, coragem, ousadia. Muitos deles foram, mais tarde, contratados para separar brigas.
Em alguns bairros de Nova York, Boston ou Chicago, contaminados pela violência, o único prédio não pichado é o da escola. São justamente lugares que adotaram a comunidade e foram adotados por ela.
Deixaram de ser escolas para se transformar em centros de convivência, abertos dia e noite não só para atividades de complementação como esporte e artes, mas aos irmãos e familiares.
São oferecidos cursos de computação aos pais, inglês, ajuda jurídica para abrir um negócio, regularizar documentos, até sessões dos alcoólatras anônimos e tratamento de drogas.
O retorno é a paz, simbolizada na ausência da pichação. O sucesso da receita é baseado na convicção de que não existe uma relação direta entre pobreza e violência. Se houvesse, países mais pobres seriam mais violentos _as estatísticas mostram que não existe essa ligação.
A ligação é, em essência, entre violência e sensação de marginalidade, de rejeição, de estar expulso _o que se via nas frases dos alunos baianos.
Quando a escola deixa de ser um aglomerado de salas de aulas e vira um espaço público de convivência, ela aumenta o capital social de uma comunidade _capital social é a rede de conexões humanas (família, igreja, associações, clubes) que oferecem um sentimento de pertencimento, de identidade, de que o indivíduo é parte integrante.
Estatísticas mostram que, quanto maior o capital social de uma comunidade, menor a taxa de violência. Nos países pobres e muito religiosos (Índia, por exemplo), a religião é o fator de integração a uma ordem. Daí o sentido de pertencimento.
Na periferia de Brasília, atacada pelas gangues, escolas ficam abertas não apenas nos finais de semana, mas de madrugada, promovendo torneios esportivos _justamente no horário da pancadaria, motivada, muitas vezes, pela simples falta de lazer.
O charme da gangue é, muitas vezes, oferecer ordem e uma idéia de que o jovem marginalizado tem um grupo solidário; a arma dá-lhe a sensação de ser alguém, ter valor. É, na prática, o mesmo papel da religião.
O processo de pacificação não se limita além dos muros, obviamente. A escola é mais um ingrediente de ressentimento quando entra no caldeirão do ressentimento. Professores desmotivados, currículos desadaptados da realidade, falta de atividades extracurriculares, banheiros entupidos, salas lúgubres.
A repetência, na prática, chama o aluno de “burro”, “incapaz”, “deficiente”. Gera, de um lado, a evasão e, de outro, a raiva, descontada em algum lugar. Seja nele próprio, num processo de autodestruição por meio do álcool e das brigas, seja nos outros.
Quando a escola promove, dá perspectiva, a comunidade acaba por reconhecer e se engajar. Experiências no Brasil mostram que, em lugares devastados pela violência, os chefes de gangues preservam a escola; reconhecem ali um espaço de progresso de seus filhos ou irmãos. Nesses casos, torna-se, de fato, numa ilha de paz, respeitada pelas gangues.
A receita da paz é o que está por traz da mais importante experiência, hoje, no Brasil, para amainar a violência escolar. É o programa, em São Paulo, batizado de “Parceiros do Futuro”, que envolve várias secretarias estaduais e municipais, organismos não-governamentais, empresários e sindicatos.
O programa vai manter as escolas abertas nos finais de semana, para atividades culturais, artísticas e esportivas, pedindo que a comunidade transforme o espaço em centro de convivência.
Essas operações são urgentes. Urgente porque a boa notícia do aumento da matrícula, queda da evasão, expansão do ensino médio (ex-colegial) também pode ser uma má notícia.
A escola era, até certo ponto, protegida da violência por causa da evasão. Quando iam ficando mais velhos, o sistema tratava de expulsá-los, a selvageria ficava do lado de fora dos muros.
Com o aumento da matrícula, o ressentimento que está lá fora entra com mais força para dentro, trazendo o risco de os pátios virarem praças de guerra. (GILBERTO DIMENSTEIN)

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