São Paulo, 17 de outubro de 1999


Periferia se iguala à Guiana e
bairros nobres, aos EUA


Risco de morrer assassinado é muito desigual e faz com que a esperança de vida do morador dos bairros pobres seja igual à registrada no resto da cidade há 20 anos

JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
da Reportagem Local

A epidemia de violência rouba dois anos e meio de vida dos homens paulistanos. A esperança de um recém-nascido do sexo masculino em 1998 em São Paulo era viver até os 65,2 anos. Descontadas, porém, as mortes causadas por assassinato, os moradores da capital teriam sua expectativa de vida ampliada até os 67,7 anos.
A violência tem sido uma das principais causas para a esperança de vida na capital ter evoluído muito lentamente neste final de século. Em 1980 ela já era de 63,6 anos para os homens. Ou seja, em quase duas décadas aumentou pouco mais de um ano e meio.
A perda de 2,5 anos se refere à média da cidade. Mas os riscos de morte por homicídio são muito desiguais e seus efeitos sobre a esperança de vida variam radicalmente de distrito para distrito.
Assim, enquanto subtraem pouco mais de seis meses da expectativa de vida dos moradores de regiões nobres da cidade, os assassinatos encurtam em quatro anos a dos habitantes do Jardim Ângela -um dos três distritos mais violentos de São Paulo.
É o que revelam cálculos feitos pelo demógrafo Carlos Eugenio de Carvalho Ferreira, do Seade (Serviço Estadual de Análise de Dados). A pedido da Folha, ele determinou a esperança de vida ao nascer para o total da cidade, bem como para os três distritos mais violentos e para três dos menos violentos.
No primeiro grupo estão Guaianases ao leste, Brasilândia ao norte e Jardim Ângela ao sul. Os três estão localizados na extrema periferia da cidade, na fronteira com outros municípios.
No ranking da morte de 1998 elaborado pelo Pro-Aim (órgão de vigilância epidemiológica da Prefeitura de São Paulo), esses distritos ficaram com as três primeiras posições.
Suas taxas de homicídio os colocariam entre os dez municípios mais violentos do país. Elas foram de 88 por 100 mil habitantes, 84,8/100 mil e 84,6/100 mil, respectivamente.
No segundo grupo, formado por áreas ricas e centrais, o risco de morrer assassinado é apenas uma fração do risco dos distritos periféricos: Jardim Paulista (2,4/ 100 mil), Consolação (3,6/100 mil) e Perdizes (8,9/100 mil).
Como aponta o documento "A Mortalidade no Município de São Paulo em 1998", do Pro-Aim, "fica evidente a relação entre a violência e as condições de vida da população".
Para se ter uma idéia da diferença, a soma do total de moradores que morreram assassinados nesses três distritos em 1998 chega a 13 pessoas -o equivalente a apenas 6% das 211 vítimas da Brasilândia.
A consequência é o aumento das desigualdades sociais dentro de São Paulo. Some-se aos assassinatos as mortes no trânsito (também mais volumosas na periferia) e maiores taxas de mortalidade infantil. O resultado será uma diferença brutal na esperança de vida entre os vários distritos da cidade.
Em Guaianases, a expectativa de vida combinada para ambos os sexos é de 64,8 anos. Nada menos do que 12 anos menor do que a esperança de vida ao nascer para o conjunto dos moradores das três áreas menos violentas (Jardim Paulista, Consolação e Perdizes), onde ela chega a 76,5 anos.
Se fossem países, os distritos ricos estariam no mesmo nível dos EUA (76,7 anos de esperança de vida e terceiro colocado no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas), enquanto Guaianases estaria em patamar semelhante ao da Guiana (64,4 anos e 99º no IDH).
Não se trata de caso isolado. A esperança de vida combinada para homens e mulheres no Jardim Ângela é de 67,8 anos (equivalente à do Quirguistão, 97º no IDH), e a da Brasilândia é de 65,5 anos (semelhante à do Turcomenistão, 96º no IDH).
Na escala da desigualdade social paulistana, os 25 km que separam os Jardins de Guaianases equivalem aos milhares de quilômetros que se interpõem entre os EUA e a Guiana.
A comparação mostra que a periferia está quase 20 anos atrasada em relação ao resto da cidade. A esperança de vida dos homens de Guaianases (60,9 anos), Brasilândia (60,7 anos) e Jardim Ângela (63 anos) ainda é inferior à da média que São Paulo apresentava em 1980 (63,6 anos).

Onda jovem
O analista do Seade aponta algumas causas para essa epidemia de violência: exclusão social, tráfico de drogas, banalização da vida e a "onda jovem" -é que os bairros periféricos concentram mais jovens do que os centrais, e são eles os principais autores e vítimas dos assassinatos.
A isso junta-se a própria circunstância geográfica. Estar na extrema periferia significa afastamento do Poder Público (leia-se polícia, calçamento, água e esgoto), significa que os mercados de distribuição de drogas ainda não estão consolidados, que as moradias são localizadas em invasões.
Todas essas condições favorecem o conflito e, no limite, os assassinatos.
É por essas razões que os médicos do Pro-Aim em seu documento sobre a mortalidade paulistana afirmam: "Só um projeto global, criativo e urgente, que tome a redução dos homicídios como prioridade e busque atuar nos diferentes determinantes e que conte com a participação de todas as instâncias de governo e da sociedade civil pode contribuir para transformar a situação."
Enquanto isso não ocorrer, as perspectivas na periferia continuarão literalmente mais curtas do que no centro da cidade.
Um jovem que consiga chegar até os 20 anos em Guaianases continuará tendo uma expectativa de viver até os 67 anos, enquanto um contemporâneo seu, cuja única diferença é morar na região privilegiada, poderá esperar chegar até os 78 anos.


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