São Paulo, 2 de outubro de 1999

UM PARADOXO AMBULANTE

Modernista, fascista, louco, sentimental, intransigente...

MARIO CESAR CARVALHO
da Reportagem Local

Pietro Maria Bardi era um paradoxo ambulante. Fascista na juventude, casou-se com uma comunista ortodoxa, dessas que acham o feminismo uma frescura de dondocas. Descobridor de raridades, entre as quais um Rafael e um Velásquez, permitia que amadores restaurassem _e estragassem_ obras-primas do Masp. Autoritário, cedia sua casa para reuniões entre Lina Bo Bardi e Carlos Marighela, o mais procurado líder guerrilheiro no final dos anos 60. Foi esse poço de contradições que gerou o mais importante diretor de museu que o Brasil já teve.
Fernando Santos/Folha Imagem
Bardi no Masp em Julho
de 1987

Bardi faz parte de uma espécie já extinta na história da arte _a dos “atribuidores”. Italiana por excelência, essa espécie abriga aqueles que só com olhos conseguem dizer se a obra ali na frente é um Rafael ou um Perugino.
É esse, talvez, o primeiro paradoxo de Bardi. Modernista, tinha horror às técnicas modernas de atribuição de autoria. Achava seu olhar mais poderoso do que aparelhos de raios X, de carbono 14, de varredura eletrônica e outras traquitanas. Era um homem do “novecento”, do século 19, como gostava de repetir.
Foi com olhos adestrados que montou o mais espetacular acervo de museu ao sul do rio Grande, aquele que divide o México dos Estados Unidos.
Fabio M. Salles/Folha Imagem
Bardi mostra "Autro-Retrato com Barba Nascente", atribuído ao círculo de Rembrandt

Uma das maiores descobertas de Bardi aconteceu em 1953. Estava em Nova York com Assis Chateaubriand, o dono dos “Diários Associados” que levantou financeiramente o Masp, e o banqueiro Walter Moreira Salles. Ficou sabendo que havia um Rafael à venda, mas a autoria era duvidosa. Não havia nenhum documento comprovando que era um Rafael.
Bardi foi à galeria, viu e comprou. Os especialistas em renascimento, escola italiana dos séculos 15 e 16, da qual Rafael é um dos principais artistas, ficaram estupefatos. “Louco”, era o mínimo que diziam sobre ele. Trinta anos depois, tiveram que se dobrar ao olhar de Bardi. Pesquisadores descobriram na biblioteca do Oxford Museum, na Inglaterra, esboços de “A Ressurreição de Cristo”, a obra que está no Masp, assinados por Rafael Sanzio.
Nem sempre, porém, o olhar era certeiro, segundo os especialistas. A Comissão Rembrandt, da Holanda, jogou na lata do lixo da história o auto-retrato de Rembrandt. É, no máximo, obra do círculo de Rembrandt, diz o parecer da comissão.
Bardi não se dobrou. Bateu o pé e manteve a plaqueta com o nome de Rembrandt embaixo da obra. Dizia conhecer Rembrandt melhor do que a comissão... Havia algo de sentimental na teimosia. As duas primeiras obras que Bardi comprou para o Masp, em 1947, foram o auto-retrato de Rembrandt e um Picasso, um pintor do século 17 e outro modernista.
O paradoxo do modernista-conservador transbordou, inevitavelmente, para o dia-a-dia do museu. Nos anos 50, quando o museu ficava no centro de São Paulo, Bardi imprimiu a ele um caráter desbravador. Levou para o museu desfiles de moda, exposições de design e de fotografia, quanto tudo isso não era considerado arte no Brasil. Junto com a Bienal e o MAM (Museu de Arte Moderna), Bardi ajudou a instaurar o primado do contemporâneo em São Paulo. Tudo isso durou até meados da década de 80. Até essa época, o Masp primava por exposições antológicas, como as de Picasso e Morandi.
O diabo era que Bardi expunha também qualquer zé mané que o conquistasse. Era a segunda maior reclamação de artistas e críticos contra Bardi: como um museu que tem os Van Goghs que têm deixa um zé mané expor lá?
A crítica número um era a fossilização do museu que já fora desbravador. Bardi tinha horror à arte abstrata, mas retrucava dizendo que já promovera até happenings no museu, quando isso era coisa de vanguarda. É verdade, mas a faceta contemporânea é uma nota de rodapé na história do museu. Após os anos 70, Bardi estava mais interessado em arte do final do século 19 para trás. O seu passado de modernista, do agitador que desafiou o ditador Benito Mussolini ao criticar os horrores neoclássicos da arquitetura fascista, era simples passado.
A mesma política de compadrio que Bardi impunha às exposições era aplicada ao acervo. Obras do Masp eram restauradas por amadores até o final dos anos 80.
O maior estrago ocorreu com “Retrato de Cristófaro Madruzzo”, uma obra-prima do renascimento pintada por Tiziano. O manto e os pés do cardeal não seguem o detalhismo de Tiziano. O manto oxidou por um restauro descuidado e os pés foram repintados toscamente. O caso virou piada na Itália: restauradores diziam que o Masp era o único museu do mundo a ter um Tiziano com pés de Mickey Mouse.

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