São Paulo, 5 de Setembro de 1996


Papel de Almeida Salles na cultura brasileira começa a ser reavaliado


RUDÁ DE ANDRADE
especial para a Folha

Na última sexta-feira, aos 84 anos, morreu Francisco Luiz de Almeida Salles, o "Presidente", como era conhecido pelos amigos.
O apelido veio-lhe pelas acumulações de presidências exercidas ao longo de sua vida.
Presidia entidades, júris, comissões, reuniões, debates, o que viesse. Não por vontade própria, mas porque o queriam, o exigiam: pela sua capacidade de expositor, redator e legislador; pela sua competência conciliatória; pela tranquilidade e otimismo que imprimia às reuniões; por ser pródigo e leal.
Durante 50 anos foi presidente da Cinemateca Brasileira em seus vários formatos jurídicos, desde sua origem como Clube de Cinema de São Paulo, terminando como presidente de honra do atual conselho da instituição.
Outro recorde foram as décadas de presidência da Associação dos Amigos do Museu de Arte Moderna, o barzinho do MAM.
A presença do Almeida Salles sempre foi cativante. Todos o queriam por perto: no trabalho, nos eventos, no convívio social. Fosse em Paris, Veneza, Roma, Rio, São Paulo ou tantos outros lugares que frequentou, a mesa do bar escolhida por ele seria a privilegiada.
O Presidente não exagerava nas falas ou discursos. Entrava no momento certo para fazer alguma observação, emitir algum pensamento ou comentário elucidativo, expondo discretamente sua grande erudição. Às vezes, apenas um trecho de suas poesias.
Sempre deixava as reuniões fluírem, especialmente no bar do MAM. Ouvia a todos com a mesma atenção, sem preconceitos, deixando cada um à vontade.
Fosse o mais simples e mal informado dos mortais, fossem os intelectuais, políticos ou empresários de primeira linha, como tantos amigos com os quais conviveu:
Burle Marx, Ulysses, Montoro, Glauber, Vinícius, Santiago Dantas, Luiz Coelho, Cicillo, Cavalcanti, Lewgoy, Paulo Emílio, Oswald, Lauro Escorel, Augusto de Campos, Di, Noêmia, Lívio Xavier, Lígia, Sérgio Milliet, Ruy Coelho, Benedito Duarte, Sérgio Buarque, Aldemir, Luiz Martins, Cícero Dias, Saraceni, Clóvis Graciano, Person, Flávio de Carvalho.
Isso sem falar de seus amigos mais próximos ou até dos distanciados como o "meu mendigo", como nomeava um sem-teto que dele recebia religiosamente, todas as noites, algumas moedas numa calçada próxima à sua residência, na praça da República.
Almeida Salles foi crítico e ensaísta cinematográfico. Além dos muitos antigos esparsos publicados, escreveu diariamente nos jornais "Diário de S.Paulo e "O Estado de S.Paulo", em boa parte dos anos 40 e na década de 50.
Em 1988 publicou "Cinema e Verdade", coletânea de críticas coordenada por Carlos Augusto Calil (Companhia das Letras).
O cinema, apesar da importância que teve em sua vida e da contribuição que deixou nesse campo, foi apenas uma das faces do Almeida Salles. Chegou a dizer que não se sentia um especialista nessa matéria, embora saibamos que o foi.
Nascido em Jundiaí, Almeida Salles mudou-se para São Paulo, onde cursou o Ginásio do Estado.
Tomou parte na Revolução de 32, contra Getúlio. Chegou a participar do movimento integralista.
Católico, devoto de São Francisco, dava a impressão de concorrer com este, pela excessiva generosidade, tolerância, paciência e altruísmo. Essa convicção não o impedia de partilhar sua amizade com ateus, radicais de esquerda ou o que fosse. Era um verdadeiro democrata, um civilizado.
Em 38, diplomou-se em direito na São Francisco. Em 39, ingressou para o serviço público, onde chegaria a procurador do Estado.
Mas sua formação intelectual foi basicamente literária e filosófica.
No início dos anos 40, frequentando a Faculdade de Filosofia, para assistir às aulas dos professores estrangeiros então em São Paulo, ligou-se ao grupo formado por Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio, Antônio Cândido, entre outros, participando da revista "Clima" e do primeiro Clube de Cinema de São Paulo, fundado por Paulo Emílio.
Deixou um livro de poesia "Espelho da Sedução" (Art Editora).
Foi diplomata, como adido cultural na embaixada brasileira em Paris. Foi professor, orador, expositor. Entretanto, uma de suas maiores qualidades era a da conversa informal. Sabia ouvir e estimular os parceiros de prosa.
Sua participação, generosa e desinteressada, contribuiu para a consolidação de muitas iniciativas importantes.
Entre os beneficiários desse trabalho de bastidor, lembramos a primeira fase do Museu de Arte Moderna de SP, a Vera Cruz, a Bienal, o cinema novo, a formação e evolução de velhos e jovens cineastas, pintores, escritores.
A presença de Almeida Salles em tantos eventos e circunstâncias do nosso desenvolvimento cultural muitas vezes não foi devidamente registrada.
Estou certo de que sua contribuição para o desenvolvimento cultural brasileiro foi notável e mereceria um levantamento metódico, para termos um panorama mais lúcido de nossa história cultural.

RUDÁ DE ANDRADE é um dos fundadores da Cinemateca Brasileira



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