São Paulo, domingo, 02 de maio de 2010

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1962

Garrincha, alegria do povo

Entre o fortalecimento da Guerra Fria e a crise política no Brasil, Mané e companhia conquistam o bi no Chile

13.jun.1962 - Folha Imagem
Multidão se reúne na praça da Sé, no centro de São Paulo, para acompanhar pelo rádio a vitória do Brasil sobre o Chile por 4 a 2, pela semifinal da Copa de 1962

MANOLO FLORENTINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se o leitor, assim como eu, tem pouco mais de 50 anos, guarda lembranças de 1962.
Certo. Maurice Halbwachs (1877-1945) escreveu que toda memória individual -sobretudo a da primeira infância- é, em grande parte, uma construção coletiva. Mas algumas recordações são só minhas. As casas de subúrbio do Rio, o Gordini do meu vizinho, as férias com meus avós no interior, o cabelo armado e cheio de laquê de minha mãe, sua rotina de trabalho dentro e fora de casa, a ausência de meu pai, a TV preto e branco e a geladeira gorducha são algumas delas.
São ícones de mudanças que marcaram os anos 50 e 60: incremento das migrações para as cidades, aumento dos divórcios, entrada das mulheres no mercado de trabalho, surgimento da indústria automobilística e do consumo de massa.
Eram tempos de pleno emprego e abastança nos EUA e na Europa, graças ao neokeynesianismo do pós-Guerra que, segundo o historiador Eric Hobsbawm, unia socialistas e liberais e isolava os comunistas.
Eu ouvia termos como "muro de Berlim", "crise dos mísseis em Cuba" e "descolonização da África e da Ásia", mas minhas recordações de menino são, óbvio, menos grandiosas. Em agosto de 1961, ocorreram a patética renúncia de Jânio Quadros e a crise militar que condicionou a posse de João Goulart à adoção do parlamentarismo. O imbróglio se alongou além da Copa do Chile.
Entre 1961 e 1963, ano em que o presidencialismo voltou, o país teve três Conselhos de Ministros, e a situação econômica se agravou. Persistia a tensão com os EUA -Goulart continuava a política externa independente de Jânio. Mas, nas artes e no esporte, não podíamos ser mais felizes.
Éder Jofre se tornou campeão mundial do peso galo por todas as entidades de boxe. "O Pagador de Promessas", do pouco reconhecido cineasta Anselmo Duarte, ganhou a Palma de Ouro em Cannes. O Brasil foi bicampeão na Copa do Chile.
Tais êxitos me levaram, cheio de orgulho, do subúrbio carioca para o mundo. Pela primeira vez, pensei ter me dado conta do que eram o Brasil e os brasileiros. Ledo engano.
Logo viriam à tona os expedientes que permitiram a Garrincha participar da decisão, após ter sido expulso contra o Chile nas semifinais da Copa. O jornalista Milton Leite dá a versão mais recente. Foi montada uma operação de guerra, que incluiu contatos entre Tancredo Neves e presidentes sul-americanos e uma passagem de avião a Paris para o bandeirinha que dedurou a porrada de Garrincha no chileno Rojas.
Sem documentos para afiançar a punição, Mané estraçalhou a Tchecoslováquia por 3 a 1.
Histórias como esta plantaram em mim a semente da crença de que o futebol, por seu engenho, por sua arte e por sua picardia, forja a alma brasileira e entranha em nós o Macunaíma que nos consola.


MANOLO FLORENTINO é professor de história na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e organizador do livro "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (Ed. Civilização Brasileira, 2005)


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