São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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JOÃO PAULO 2º

ANÁLISE

O choque entre ética e realismo

SLAVOJ ZIZEK
ESPECIAL PARA A FOLHA

Todo bom cristão não só não se deixa ofender, mas deveria sentir nada mais do que alegria sem culpa diante de "The Politically Correct Guide to the Bible" (Guia Politicamente Correto Para a Bíblia, ed. Crown), de Edward Moser.
Se esse hilariante livrinho tem algum problema, é o fato de que depende um pouco demais do procedimento padrão de iniciar cada verbete com a bem conhecida e sisuda linha da Bíblia e acrescentar ao final, como uma reviravolta, uma qualificação absolutamente contemporânea, seguindo a bem conhecida blague de Marx sobre a maneira pela qual os direitos humanos garantidos pela Revolução Francesa (1789) funcionam na vida real do mercado: "Liberdade, igualdade e Bentham".
"Ainda que eu caminhe pelo vale da sombra da morte, não temerei, pois "temor" e "bem" são formulações ideológicas que dependem de uma lógica binária e exclusivista." "E eles começaram uma algaravia, mas cada homem os ouvia em sua própria língua, devido aos programas de educação bilíngue."
Essa forma de reescrever chega a um ponto alto quando Moisés reformula os dez mandamentos e faz deles "dez recomendações". Basta mencionar duas delas: "Não respeitarás o domingo, para que possas fazer tuas compras naquele dia" e "não tomarás o nome de Deus em vão, a não ser com exagero, particularmente se fores um artista da linha "gangsta rap'".
O problema é que aquilo que Moser evoca satiricamente e com exagero em seu trabalho está na realidade acontecendo hoje: não praticamos uma reforma semelhante nos mandamentos? Um comando é severo demais? Basta devolver a cena ao monte Sinai e reescrevê-lo. "Não cometerás adultério exceto se for emocionalmente sincero e servir à meta de uma profunda realização pessoal."
Exemplar quanto a isso é "The Hidden Jesus" (O Jesus Oculto, ed. Griffin), de Donald Spoto, uma visão "liberal" do cristianismo, em que lemos, a propósito do divórcio, que "Jesus claramente denunciou o divórcio e segundas núpcias... Mas Jesus não chegou jamais a dizer que casamentos não podem ser desfeitos... Não existe em qualquer outra parte de seus ensinamentos uma situação em que uma pessoa se veja eternamente acorrentada às conseqüências do pecado. Seu tratamento das pessoas, como um todo, envolvia liberação, não legislação... É evidente que na verdade alguns casamentos simplesmente se dissolvem, que compromissos são abandonados, que promessas são violadas, amores, traídos".
Por mais simpáticas e "liberais" que sejam essas palavras, elas envolvem uma confusão fatal entre altos e baixos emocionais e um compromisso simbólico incondicional que deveria ser mantido exatamente quando deixa de ser sustentado por emoções diretas.
"Não te divorciarás exceto quando teu casamento se dissolve "de verdade", quando ele se assemelha a uma experiência emocional desagradável que te frustre em tua vida", ou seja, exceto quando a proibição ao divórcio teria seu pleno valor (por que alguém se divorciaria quando o casamento está florescendo?)!
Emblemática quanto a isso foi a figura de João Paulo 2º. Mesmo aqueles que respeitavam a postura moral do papa usualmente acompanhavam essa admiração com a qualificação de que ele, no entanto, continuava a ser desesperadamente antiquado, quase medieval, aderindo a dogmas antigos, fora de contato com as demandas dos novos tempos: como ignorar, hoje, a contracepção, o divórcio, o aborto? Não se trata simplesmente de fatos de nossas vidas? Como pôde o papa negar o direito ao aborto até mesmo a uma freira (da maneira que efetivamente o fez no caso de freiras violentadas durante a Guerra da Bósnia)?
Não fica claro que, mesmo que sejamos a priori adversários do aborto, em um caso extremo como esse o certo seria abandonar os princípios e aceitar um compromisso?
Pode-se compreender, agora, por que o Dalai Lama é muito mais apropriado aos nossos tempos modernos e permissivos: ele nos oferece um espiritualismo vago e cheio de bons sentimentos, sem nenhuma obrigação específica. Todo mundo, até mesmo astros decadentes de Hollywood, pode seguir sua doutrina e manter um estilo de vida promíscuo e obcecado pelo dinheiro. Em contraste, o papa nos lembra que existe um preço a ser pago pela atitude ética correta, que é exatamente a sua teimosa adesão aos "velhos valores", sua recusa em acatar as demandas "realistas" de nossa era, mesmo que os argumentos contra ele pareçam "óbvios" (como no caso das freiras violentadas), que fazem dele uma autêntica figura ética.
Mas será que o heroísmo ético exibido por João Paulo 2º é autêntico? Ou se trataria de uma forma daquilo que Alain Badiou chamou de "paixão do real", o falso gesto heróico de assumir plenamente o lado sujo e obsceno do poder: "Alguém tem de fazer o trabalho sujo, vamos lá!".
Em sua forma extrema, isso nos lembra da mensagem de Heinrich Himmler aos oficiais da SS (a tropa de elite da Alemanha nazista): é fácil fazer algo de nobre pelo país, até mesmo sacrificar a vida por ele. Muito mais difícil é cometer um crime em seu nome.
A Igreja Católica tem sua organização sigilosa para tarefas secretas, a infame Opus Dei, a "máfia branca" da igreja, envolta em segredos para incorporar a pura lei, para além de qualquer legalidade positiva: seu papel supremo é a obediência incondicional ao papa e a determinação impiedosa de trabalhar para a igreja, com todas as demais regras (potencialmente) suspensas.
Como regra, seus membros, cuja tarefa é penetrar os principais círculos políticos e financeiros, não revelam seus vínculos para com a organização. Dessa forma, são de fato a "opus dei" Äobra divinaÄ, ou seja, adotam a perversa posição de instrumentos diretos da vontade do outro.
Além disso, há um enorme número de casos de abuso sexual de crianças por padres. A incidência desse tipo de caso é tão grande, da Áustria à Itália, passando pela Irlanda e pelos EUA, que se poderia falar de uma "contracultura" articulada dentro da igreja, com um conjunto de regras ocultas. E existe uma interconexão entre os dois níveis, já que a Opus Dei interfere regularmente para ocultar os escândalos dos padres.
Incidentalmente, a reação da igreja aos escândalos sexuais também demonstra a maneira pela qual a instituição percebe seu papel: a igreja insiste em que esses casos, por mais deploráveis que se revelem, são assunto interno. E, de certa maneira, a igreja está certa: abuso de crianças é seu problema interno, ou seja, um produto inerente de sua organização simbólica e institucional, e não apenas uma série de casos criminais particulares envolvendo indivíduos que por acaso são padres.
Consequentemente, a resposta a essa relutância da igreja deveria ser não só a de que estamos lidando com casos criminais Äe, se a igreja não participar plenamente das investigações, estará se tornando cúmpliceÄ, mas também a de que a igreja como tal, como instituição, deveria ser investigada, com respeito à forma pela qual ela sistematicamente cria condições para esses crimes.
Essa é também a razão por que não é possível explicar os escândalos sexuais em que padres estão envolvidos como uma manipulação dos oponentes do celibato, que desejam reforçar sua alegação de que, caso os desejos sexuais dos padres não sejam atendidos de maneira legítima, explodirão de forma patológica: permitir que os padres católicos casem não resolveria nada, não teríamos padres cuidando de seu trabalho sem molestar meninos, já que a pedofilia é gerada pela instituição católica do sacerdócio como seu obsceno suplemento secreto.
E é nisso que o papa fracassou: sob seu reinado, a Opus Dei se tornou mais forte do que nunca. João Paulo 2º canonizou o fundador da organização, mas, a despeito de seus pronunciamentos públicos, ele não confrontou plenamente as conseqüências dos escândalos de pedofilia. E é por isso que João Paulo 2º é um herói trágico, uma prova de que até mesmo uma postura radical e sincera de ética pode ser uma farsa.


Slavoj Zizek é filósofo esloveno e autor, entre outros, de "Um Mapa da Ideologia". Tradução de Clara Allain.

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