São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2011

Texto Anterior | Índice | Comunicar Erros

OPINIÃO

Um Estado criado antes da sociedade

FERNANDO RODRIGUES
DE BRASÍLIA

Uma vez em seu gabinete no terceiro andar do Palácio do Planalto Fernando Henrique Cardoso contemplava a vista em direção ao lago Paranoá. Na margem oposta, crescia um grande condomínio irregular, com várias casas suntuosas. O tucano observou e comentou com um interlocutor: "O Brasil é fantástico. Aqui, tem até invasão de rico".
A cena foi nos anos 90. O condomínio ainda está lá, consolidado. Destruiu-se uma área de proteção ambiental bem à margem do lago que armazena a água usada pelos brasilienses para beber e tomar banho.
O governo federal, por meio do Ibama, nada fez. O governo do Distrito Federal quedou-se também paralisado.
Quando cheguei a Brasília, em 1996, li um anúncio em jornal oferecendo terrenos por ali. Considerada a localização, eram muito baratos. Um deles, de frente para o lago, custava R$ 60 mil. Mesmo descontada toda a inflação de lá para cá, era uma pechincha. Fui conhecer.
E a documentação? "Tem um registro de compra e venda no cartório de Luziânia", respondeu o corretor. Luziânia é uma cidade de Goiás, nos arredores de Brasília.

VIZINHO ILUSTRE
Desconfiado e desinformado à época, quis saber se não havia algo irregular. "Nada, nada. Sabe quem será seu vizinho aqui? O desembargador... E ali, tem outro desembargador." Omito os nomes porque não me lembro. Nem sei se o vendedor estava dizendo a verdade e se um juiz planejava mesmo edificar no local. Dei o fora e fiquei longe daquela invasão de ricos.
Estima-se que perto de meio milhão de pessoas vivam em condomínios irregulares ou com registros de propriedade precários em Brasília, a capital do país cuja população atual é de 2,6 milhões de habitantes. Essa balbúrdia fundiária se deu nos últimos 25 anos, nas barbas das autoridades e sob regime democrático.
Há por aqui uma configuração do Estado e uma conformação da sociedade que favorecem o jeitinho e tudo o mais que os brasileiros assistem, ouvem e leem no noticiário sobre casos de corrupção.
Não que os habitantes de Brasília sejam eles próprios corruptos ou propensos a desvios de conduta por razões atávicas. O problema está na configuração do Estado e do poder ou do "pudêr", na pronúncia no local.
Obcecado por números e por meios de quantificar relatos jornalísticos, descobri que não há estatísticas precisas sobre o número total de funcionários públicos para períodos anteriores a 1996. Foi quando implantou-se um sistema por determinação do então ministro da Administração e Reforma do Estado Luiz Carlos Bresser-Pereira.
Antes, o presidente tomava posse e não tinha noção exata de quantos eram seus comandados. "Seria necessário ligar para todos os órgãos, pedir informações, cruzar com folha de pagamentos. Não existia um número pronto, disponível."
Graças a esse controle, hoje é possível saber que, em maio deste ano, havia 776.183 servidores federais na ativa excetuando-se os militares. Houve um crescimento de 21,4% desde quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu, pois em 2003 o total de funcionários na máquina pública federal era de 639.355.

PUNIÇÃO
Essa quantificação é um avanço. Não é por acaso também o aumento de expulsões de servidores nos últimos anos, acusados de corrupção -onde há mais controle, mais gente será punida. Mas tudo ainda é modesto para extirpar a cultura do aparelhamento e patrimonialismo na capital do país.
Em 2005, o então deputado federal Severino Cavalcanti (PP-PE) caminhava de seu gabinete até o elevador do Anexo 4, o edifício conhecido como Serra Pelada e local de trabalho dos congressistas. O político estava em campanha para ser presidente da Câmara.
Pegou-me pelo braço e passou a falar num tom de voz mais baixo. Parecia querer fazer uma confissão. "Você sabe quantos Estados têm o Orçamento menor que o da Câmara? Muitos. Isso aqui é um país", disse-me Severino.
Era verdade. Em 2010, com seus 15,8 mil funcionários e um orçamento anual de R$ 3,3 bilhões, a Câmara superava com folga Amapá e Roraima. O Congresso (Câmara e Senado) abriga 22 mil servidores e gasta R$ 6,2 bilhões por ano -valor que empata com as despesas anuais da Paraíba e supera os de oito Estados (Acre, Alagoas, Amapá, Piauí, Rondônia, Roraima, Sergipe e Tocantins).
Os olhos de Severino Cavalcanti brilhavam em 2005 ao mencionar o valor do Orçamento que iria controlar caso fosse eleito presidente da Câmara dos Deputados. Ele venceu e depois caiu por causa de um escândalo de corrupção.

"CLAIMS"
Quando um político vai comandar um órgão com muito dinheiro, sempre existe um risco. Há alguns anos, um senador da República soube que um amigo seria o novo presidente da estatal de energia Furnas. Eis sua reação: "Vai ser ele? Ótimo, agora poderemos encaminhar todos os nossos "claims" que ele nos ajudará".
No contexto usado, a tradução de "claims" era "reivindicações de pagamentos em dinheiro para contratos que temos na empresa".
Essa cultura do compadrio, da apropriação do bem público e as suas consequências estão entranhadas na cultura do poder em Brasília. Demitir quatro ministros, como fez a presidente Dilma Rousseff, ajuda a mitigar o problema. Mas ainda há uma grande distância até ocorrer uma mudança de valores.
Até porque em Brasília vale a frase tão usada no início do movimento neoliberal para o Brasil: na capital federal, o Estado nasceu antes da sociedade. Nada mais natural que os que vivem nesse ambiente julgarem poder fazer o que bem entenderem com o dinheiro público.


Texto Anterior: Escândalos sem fim
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.