São Paulo, quinta, 6 de agosto de 1998

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DNA
O ácido desoxirribonucléico é a substância que compõe os cromossomos, estruturas presentes no núcleo das células. Nos cromossomos estão os genes, unidades hereditárias que determinam as características de cada ser humano. O DNA foi identificado em 1862, mas o conhecimento mais completo de suas funções só foi possível após a descrição de sua estrutura, em 1953. O DNA é encontrado em todos os seres vivos, exceto alguns tipos de vírus


O inglês Francis Crick, um dos ganhadores do Nobel de 1962 pela descoberta da estrutura do DNA, trocou a biologia molecular pelo estudo da consciência; ele acha que é inevitável a criação de "pessoas melhores"


MARCELO LEITE
enviado especial a La Jolla (EUA)

A primeira coisa a atrair a atenção em Francis Crick são suas sobrancelhas, brancas e enormes. Elas dão um ar enigmático ao ganhador do Prêmio Nobel de 1962, com James Watson e Maurice Wilkins, pela descoberta da estrutura do DNA (ácido desoxirribonucléico). Este é um homem que, em lugar de instalar-se na glória do feito, abandonou a biologia molecular quando tinha já 60 anos.
Passou a dedicar-se a outra questão espinhosa, a base material da consciência. Uma carreira no mínimo "incomum", diz o cientista inglês, hoje com 82 anos.
Originalmente um físico que projetava sensores magnéticos para minas navais na Segunda Guerra Mundial, bandeou-se para a biologia depois dos 30, atraído por um mistério: a fronteira molecular entre matéria inanimada e vida.
O enigma do próprio Crick desfaz-se assim que ele começa a falar, em sua sala com vista para o Pacífico no Instituto Salk. Mesmo acompanhando a biologia molecular apenas à distância, Crick tem grande esperança nela, pois acredita que fornecerá os instrumentos para decifrar como o cérebro produz a consciência.
"O DNA foi um caso muito incomum. Havia essa estrutura molecular, que sugeria imediatamente todo tipo de coisas: como se replicava, como a informação (genética) estava codificada, e todos esses problemas foram resolvidos no espaço de pouco mais de 12 anos. É muito improvável que façamos alguma descoberta que corresponda à simplicidade do DNA. E a razão é que essa estrutura se originou muito perto da origem da vida, quando as coisas tinham de ser muito simples. Já a consciência apareceu como resultado de um sistema complexo, é um tipo diferente de propriedade. Estamos procurando um jeito de sair do problema, mas não sabemos para onde ir", relata Crick.
Apóia incondicionalmente o Projeto Genoma Humano -que visa o mapeamento completo e a leitura das instruções contidas em cada gene presente no corpo humano e torce para que ande mais rápido.
Não parece muito preocupado com as implicações éticas da genética, pois acredita que os meios para alterar significativamente o plano básico do homem ainda demorarão cem, ou talvez mil anos.
Crick também desconfia da capacidade do público para entender e lidar com a suposta caixa de Pandora, mas tem certeza de que será aberta, um dia: "É inevitável".
Em seu escritório no prédio-monumento que Jonas Salk ergueu para si mesmo em La Jolla, litoral sul da Califórnia (EUA), o cientista falou à Folha.

Folha - Como e por que o sr. deixou o estudo do DNA pelo do funcionamento do cérebro e da consciência, tema de seu último livro, "The Astonishing Hypothesis" (A Hipótese Surpreendente)?
Francis Crick -
Eu expliquei isso mais longamente num outro livro, "What Mad Pursuit" (Que Busca Mais Louca). Basicamente, quando eu trabalhava para o Almirantado Britânico, no final da Segunda Guerra Mundial, e pensando no que fazer -porque não queria continuar como um cientista no serviço público-, eu possuía tão pouca formação científica que poderia ir para qualquer campo.
Eu tinha uns 30 anos. Estreitei meus interesses para dois campos, um a fronteira entre o vivo e o não-vivo, o que agora chamamos de biologia molecular, e o outro seria o que chamamos de neurociências. Os dois naquele tempo pareciam incluir um profundo mistério, como explicar seres vivos em termos de átomos e moléculas e como explicar a consciência pelos processos do cérebro.
Folha - Então o sr. já tinha os dois interesses desde o começo?
Crick -
Sim. Quando cheguei aqui (ao Salk Institute), o então presidente me convenceu a ficar, quando eu já tinha 60 anos. Decidi que, se fosse mudar de campo, iria para a neurociência. Mas precisei de muitos anos para me afastar da biologia molecular.
Folha - O sr. acredita que decifrar o genoma humano pode contribuir para a compreensão do cérebro e da consciência?
Crick -
Enormemente. Muitas pessoas no campo da neurociência ainda não se deram conta de que ajuda enorme seria. Será possível caracterizar todo o sistema, que hoje ainda é muito grosseiro. Há muitos tipos de neurônios, nem sabemos direito quantos.
Folha - O sr. portanto apóia o Projeto Genoma Humano?
Crick -
Sim, e muito. Acho até que eles devem seguir um pouco mais rápido, agora que têm uma certa concorrência.
Folha - Como o sr. reagiu ao anúncio por Craig Venter de que pode acelerar o sequenciamento do DNA humano, em parceria com a iniciativa privada e ultrapassando o próprio Projeto Genoma?
Crick -
Não estou diretamente envolvido, só acompanho à distância. No que me diz respeito, quanto mais depressa, melhor.
Folha - Mas não há alguma preocupação com a participação de companhias privadas e a possibilidade de que obtenham patentes, controlando o uso de informação científica, e assim por diante?
Crick -
Sim, sempre há esses perigos. Tudo o que sei é o que leio nas revistas "Nature" e "Science". Eu não estou numa posição de autoridade para tomar qualquer decisão. Só estou interessado nos resultados.
Folha - Suponha que em cinco ou dez anos seu grupo encontre a sede da consciência no cérebro. O sr. será lembrado por isso ou pela descoberta da estrutura do DNA? O que é mais importante?
Crick -
(Ri.) Em primeiro lugar, duvido que tenha sorte bastante para conseguir fazer isso, mas vamos lá. É claro que, se topar com uma solução dramática na qual ninguém ainda tinha pensado, seremos lembrados pelas duas coisas. Einstein é lembrado tanto pelo efeito fotoelétrico quanto pela Teoria da Relatividade, que são coisas muito diferentes.
Folha - Há muita discussão no público sobre o uso dessas descobertas, seja DNA ou, algum dia, a base fisiológica da consciência. O sr. acha que esse tipo de conhecimento pode ou deve ser usado para aperfeiçoar o organismo humano, a condição humana?
Crick -
Não acredito que possa ser usado num futuro próximo, pois não sabemos o bastante em biologia molecular nem em biologia do desenvolvimento e não entendemos de maneira realmente sofisticada como seres humanos se comportam. A curto prazo, não deveria certamente haver pressão nesse sentido. A longo prazo, é inevitável. É inevitável.
Se os métodos estão disponíveis para criar -eu ia dizer "sistemas melhores"- pessoas melhores, tudo sugere que as pessoas vão querer usá-los. Não devem ser usados neste momento, seria muito precipitado, pois em primeiro lugar não sabemos o que queremos, e em segundo lugar os métodos não são muito bons e poderiam facilmente provocar danos. Mas a longo prazo, quero dizer, 100, 200, 300 ou 1.000 anos, penso que é inevitável.
Folha - Parece haver no público, porém, a noção de que certas fronteiras a ciência não pode cruzar, ainda que a tendência seja a de mover continuamente essa linha para mais adiante.
Crick -
Está certo, é preciso cautela. Mas o público em geral acredita em várias coisas extraordinárias. A maioria das pessoas neste país (EUA) não acredita em seleção natural e evolução (ri). Por isso é que digo que só os aspectos sociais devem ser levados em conta. É como a questão do ambiente, um assunto político.
Houve recentemente duas grandes mudanças de pensamento. Há 30 anos, ninguém queria acreditar que o comportamento humano fosse influenciado por genes, os antropólogos não acreditavam, os psicólogos não acreditavam. Isso mudou, mas fomos longe demais na outra direção. As pessoas agora acreditam que deve haver um gene para isso, outro gene para aquilo...
Folha - Um gene para a homossexualidade, outro para a agressividade...
Crick -
É preciso acalmar um pouco isso, mas o fato é que houve uma mudança. E também na maneira que as pessoas pensam o cérebro, em grande parte graças a Oliver Sacks (neurobiólogo, autor de "Tempo de Despertar", entre outros). Ele escreve livros muito bons, as pessoas lêem e começam a mudar a forma de ver o cérebro. É possível mudar o modo de pensar de pessoas cultas, até mesmo de pessoas menos cultas, mas em períodos de 20 anos. Outra mudança importante foi em relação ao controle da natalidade. Você não podia mencionar isso em 1945, mas, quando veio a pílula, ela mudou tudo.


Na Internet:
Salk Institute: http://www.salk.edu



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