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São Paulo, sexta-feira, 07 de março de 2003

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Sydney Brenner

Nobel
além do genoma

Frank Leonhardt/FrancePresse-8.out.2002
O Nobel Sydney Brenner, do Instituto Salk, nos Estados Unidos


Pesquisador sul-africano critica o sequenciamento de DNA e reavalia a descoberta seminal de Watson e Crick

REINALDO JOSÉ LOPES
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Depois do sequenciamento do genoma humano, é hora de enfrentar os verdadeiros problemas da genética. É assim que um dos três ganhadores do Nobel de Medicina de 2002, o sul-africano Sydney Brenner, vê o futuro da dupla hélice e de seu cada vez mais importante parceiro, o RNA.

Poucos são mais indicados que Brenner, 76, para falar dessa molécula. Ao trabalhar no mesmo grupo de Francis Crick, nos anos 50, ele elucidou o funcionamento do RNA mensageiro (mRNA), que faz a ponte entre as informações contidas no DNA do núcleo celular e a produção de proteínas, no citoplasma da célula.
Para o pesquisador, hoje no Instituto Salk, nos Estados Unidos, a dupla hélice de Watson e Crick continuará sendo central para a biologia do século 21. Mas é preciso deixar de lado a simples transcrição do genoma e se debruçar sobre os processos de ativação e controle dos genes que ajudam os organismos a ser o que eles são.
De sua casa em La Jolla, na Califórnia, Brenner conversou com a Folha por telefone. Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
 

Folha - Quais são suas recordações sobre o clima intelectual da descoberta da estrutura do DNA?
Sydney Brenner -
Para mim foi uma revelação. Essa é a palavra que eu costumo usar. Eu vi o modelo antes que ele fosse publicado, e a sensação foi de uma mudança completa na maneira como nós iríamos fazer biologia.

Folha - Depois de toda a história da biologia molecular que veio em seguida, o sr. diria que as pessoas deixaram de ver implicações ou limitações da descoberta?
Brenner -
Sim, acho que definitivamente sim, no começo. A natureza toda da descoberta e suas implicações não foram realmente compreendidas por algum tempo. Essencialmente, a implicação mais profunda, que nos deu, por assim dizer, uma nova moeda na bioquímica, foi a da informação. Antes da estrutura, se você tentasse falar sobre a química da informação, não teria feito sentido.

Folha - O Projeto Genoma Humano e outros projetos similares têm recebido críticas consideráveis. Muitos dizem que eles não trabalham com hipóteses e, por isso, não são verdadeira ciência. O que o sr. pensa dessas críticas?
Brenner -
Tenho sido um crítico do tipo de escola que realiza esse trabalho, que tem orgulho de não ter uma hipótese. Isto é, você coleta o máximo de informação possível e espera que a hipótese surja dos dados, que a teoria surja dos dados, e eu não acho que esse seja o caminho certo a seguir.

Folha - É por isso que o sr. não esteve muito envolvido com esses projetos?
Brenner -
Ora, eu mesmo tive um projeto genoma!

Folha - Sim, o do peixe "fugu" [tipo de baiacu], mas seu envolvimento com o Projeto Genoma Humano foi pequeno...
Brenner -
Não, eu... você sabe [hesita]... Eu acho que os projetos genoma em larga escala não têm a ver com ciência, na verdade. Eles têm a ver com duas outras coisas: uma se chama dinheiro, a outra gerenciamento. Eu acho que tudo isso não tem a ver com ciência. Você produz sequências como uma fábrica produz cerveja.

Folha - E o sr. acha que esses projetos poderiam ter sido conduzidos de outra maneira?
Brenner -
Estava claro que a tecnologia, como ela existia na época, não estava à altura disso. Um cientista sozinho não pode ir lá e fazer o serviço. Porque é muito laborioso. Quero dizer, no fim nós teríamos sequenciado todo o genoma humano, mas em pequenos pedaços. Eu acho que foi uma operação cara, e, agora que está pronta, deveríamos esquecer isso e continuar com a ciência.

Folha - O sr. ajudou a desvendar o RNA mensageiro. Nos últimos anos, vários achados interessantes, como a interferência de RNA, têm mostrado o potencial dessa molécula para entender e controlar o genoma. O sr. acha que o RNA pode superar o DNA?
Brenner -
Não, não acredito nisso. O fato de que os genes da vasta maioria dos organismos do mundo são feitos de DNA é algo importante. O RNA, acho, é importante, sempre foi importante e, conforme formos aprendendo mais e mais sobre ele, construiremos coisas muito interessantes, em especial sobre a maneira como os genes funcionam nos organismos. Mas tudo está codificado nos genes e, portanto, no DNA.

Folha - O sr. acha que os biólogos moleculares estão conseguindo mostrar ao público que a complexidade do genoma não é compatível com o determinismo genético?
Brenner -
Os cientistas em geral não estão fazendo isso bem. Eu não culparia só os biólogos moleculares! (risos). Acho que na verdade são duas coisas. Um, as pessoas confundem genomas com pessoas, e eu acho que é importante manter os dois separados. Seu genoma é parte de você, mas ele não é você.
Essa conversa sobre clonagem - parece que ninguém é capaz de entender que você não está clonando uma pessoa, só está clonando um genoma. Não é possível fazer isso [clonar uma pessoa]. Você como pessoa é a sua história, as suas lembranças, todas as coisas importantes que fazem você humano.
E eu também acho [em segundo lugar] que há uma conversa fiada incrível sobre genes do alcoolismo, genes da homossexualidade, e assim por diante. Desse jeito, alguém poderia sair por aí falando de genes da sorte. Isso é bobagem.

Folha - Seu trabalho com o verme C. elegans lhe deu um Nobel. O sr. acha que os cientistas ainda têm coisas importantes a descobrir trabalhando com ele?
Brenner -
Sim, sem dúvida. Acho que os organismos-modelo são muito importantes. Afinal de contas, o nosso grande problema agora é como lidar com a complexidade biológica. E o C. elegans é uma grande oportunidade para enfrentar isso de forma fundamental. Então eu sinto que ele tem sido uma plataforma incrivelmente boa para desenvolver ao menos os inícios de tal trabalho. A interferência de RNA começou com ele, todo o trabalho que mostrou como cada célula surge no desenvolvimento, ele foi o primeiro [animal] a ter o genoma sequenciado -tudo isso começa a montar o palco para se tentar alcançar um entendimento total.

Folha - Quais são as questões da biologia que ainda estão por ser respondidas e que o sr. gostaria de investigar?
Brenner -
Muita coisa ainda está por responder. O modo pelo qual um conjunto de genes e o ambiente e a história se juntam para fazer de cada um de nós uma pessoa única, o que determina o que, como essas coisas interagem. Isso ainda dará combustível para pesquisa daqui a anos e anos.


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