São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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Serra revive velho dilema entre ser contra ou a favor


Fiel às convicções social-democratas que amadureceu no exílio, tucano encarna paradoxo de ser voz dissonante do poder, mesmo nele atuando como figura de destaque há duas décadas


OSCAR PILAGALLO
JULIA DUAILIBI
DA REPORTAGEM LOCAL

Cabelos desalinhados, José Serra discursava no palanque montado na Cinelândia, no Rio, quando chegou o presidente.
A praça estava tomada pela multidão. João Goulart fez uma entrada apoteótica, no ombro de Augusto da Costa, um ex-integrante da seleção vice-campeã da Copa de 1950. Realizado em 23 de agosto de 1963, o comício homenageava Getúlio Vargas, morto nove anos antes.
A noite era de Goulart e os dez oradores convidados deveriam se limitar a radicalizar a retórica em favor das reformas de base, a principal bandeira do governo.
A euforia de Jango, no entanto, logo daria lugar à contrariedade. O jovem de 21 anos que estava ao microfone, presidente recém-eleito da UNE (União Nacional dos Estudantes), fugia do script.
Pela lógica, a entidade deveria se solidarizar com um presidente populista apoiado pelas esquerdas e sob pressão da direita. Não foi esse, porém, o sentido da participação de Serra no comício, sua estréia na política nacional.
O líder dos estudantes começou previsível. Bateu no governo norte-americano e chamou o presidente John Kennedy de inimigo do Brasil. Mas não poupou Jango.
Acreditava-se que Goulart faria intervenção em São Paulo e no então Estado da Guanabara, cujos governadores articulavam sua derrubada. Longe de se identificar com as forças reacionárias, Serra atacou a idéia da intervenção -por princípio democrático e por raciocínio político, pois achava que a ação desencadearia um golpe de direita.
Mais aplaudido do que Jango, segundo sua ficha no Dops (órgão de segurança que reprimia as organizações de esquerda), o estudante -com experiência de ator universitário- falou num dos pontos altos do comício, deferência desproporcional à sua importância. "Era para eu ter falado no começo, na hora em que o pessoal come pipoca, toma sorvete. Mas, involuntariamente, cheguei atrasado", contou à Folha 20 anos mais tarde (hoje prefere a versão de que o atraso foi estratégico).
O episódio encerra duas particularidades que Serra conservaria ao longo de sua vida pública: ser uma voz dissonante dentro do establishment ao qual pertence e perder a hora dos compromissos.
Apesar de recém-chegado ao palco principal da política, Serra não era um militante neófito.
"Em São Paulo, a AP se desenvolveu a partir do meu trabalho no movimento estudantil, mas não fui um coadjuvante em nível nacional", disse ele à Folha na semana passada.
Com um currículo desses, o presidente da UNE foi um dos perseguidos de primeira hora pelo regime militar iniciado em março de 1964. O golpe o pegou no Rio, onde morava, nos precários alojamentos da entidade.


Foi um dos fundadores da Ação Popular, grupo de esquerda não-marxista ligado à corrente progressista da igreja


Paulistano da Mooca, Serra não tinha para onde ir no Rio. Valeu-se da ajuda de seu vice, Marcello Cerqueira, hoje presidente do Instituto dos Advogados do Brasil. Cerqueira o levou para a casa de um médico recém-formado, Jacob Kligerman (hoje presidente do Instituto Nacional do Câncer), que o escondeu e lhe deu roupas. Por alguns dias, Serra permaneceu desconectado do mundo exterior, sem poder nem ao menos se comunicar com a família.
Após breve período de clandestinidade, conseguiu entrar na Embaixada da Bolívia, onde ficou confinado por três meses. De lá, partiu para o exílio de 14 anos que marcaria profundamente sua formação pessoal e intelectual.
Serra chegou a morar na França, mas foi no Chile e nos Estados Unidos que passou a maior parte do tempo.
No exterior, após ter sido impedido de concluir o curso de engenharia na Politécnica, enveredou de vez para a economia.
Cursou a Escolatina (Escola de Pós-Graduação em Economia da Universidade do Chile) e lecionou matemática para economistas, num instituto da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe), órgão da ONU.
Foi no Chile que Serra trabalhou ao lado do sociólogo Fernando Henrique Cardoso e conheceu a economista Maria da Conceição Tavares -duas influências que, então, não eram conflitantes. Vem dessa época sua convicção num modelo econômico desenvolvimentista que o tornaria o maior crítico, dentro do governo, de um certo liberalismo que caracterizou a presidência de FHC.
Foi no Chile, também, que Serra conheceu sua futura mulher, a então bailarina Sílvia Mônica Allende, e viu nascerem seus dois filhos, Verônica e Luciano.

Do exílio veio a convicção da necessidade de um modelo desenvolvimentista, que o tornaria crítico da era Malan


O menino era um bebê quando, em setembro de 1973, o golpe do general Pinochet abortou o governo socialista do presidente Allende e colocou a direita no poder.
Depois de ser encaminhado ao Estádio Nacional de Santiago, onde muitas pessoas foram executadas, e de passar oito meses na Embaixada da Itália, Serra partiu para novo exílio, dessa vez os EUA -a pátria de "inimigos do Brasil" da sua retórica de anos antes.
Nas universidades de Cornell e Princeton complementou o estudo acadêmico e estreitou os laços de amizade com Fernando Henrique.
Os golpes de 64, no Brasil, e o de 73, no Chile, foram pontos de inflexão fundamentais na formação ideológica de Serra.
Ele considera que, após esses revezes, intensificou a restrição ao populismo, valorizou mais a estabilidade econômica e se preveniu contra o voluntarismo excessivo -"e olhe que eu sou voluntarista".
No período, deslizou da esquerda não-marxista para uma posição social-democrata, que defende até hoje.
O economista que voltou ao Brasil em 1978 -um dos poucos a ter se arriscado a voltar antes da anistia do ano seguinte- soava, portanto, bem mais moderado do que o estudante dos anos 60. José Serra estava pronto para entrar no "mainstream" da política.
Tentou se eleger deputado pelo MDB, mas teve a candidatura impugnada. Passou, então, a lecionar na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), o maior celeiro de economistas de oposição.
Ao mesmo tempo, se engajou na coordenação da campanha de FHC ao Senado. Também trabalhou como editorialista na Folha e ingressou no Cebrap, principal ninho dos futuros tucanos.
Em 1983, Serra assumiu a pasta de Economia e Planejamento de São Paulo e, com um estilo centralizador, logo se tornou o principal secretário do governador Franco Montoro, ocupando amplo espaço político. Adiou projetos e cortou despesas, impondo uma política de austeridade para enfrentar a crise de endividamento.
Com essa bagagem, desembarcou em Brasília em 1984 para coordenar o programa econômico de Tancredo Neves, recém-eleito presidente pelo Colégio Eleitoral, depois de a campanha pelas diretas-já ter sido derrotada no Congresso.
Serra reivindica para si a primeira proposta consistente de abertura comercial, incluída no programa. Com a morte do presidente antes da posse, as idéias foram engavetadas.
Quando finalmente disputou uma vaga na Câmara, em 1986, já era um nome de projeção nacional. Na Constituinte, teve o maior índice de aprovação de emendas: 130, das mais de 200 apresentadas. As mais importantes, em sua opinião, foram as que deram origem ao FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e a que viabilizou o seguro-desemprego. Parlamentarista convicto, Serra acredita que a Constituição, feita para esse regime, "ficou torta" com a vitória do presidencialismo.
No governo Collor, atuou como líder da bancada do PSDB na Câmara e se manteve distante do Executivo. Foi convidado e recusou substituir Zélia Cardoso de Mello no Ministério da Fazenda.
O lugar no primeiro escalão federal só viria em 1995, com a posse de FHC, que o colocou no Planejamento a contragosto, após muita insistência por parte do ministro. A pasta imaginada por FHC para Serra era a Educação.
Não era mesmo uma situação confortável, pois, no ano anterior, Serra fizera reservas ao expressar seu apoio ao Plano Real.
Preocupado com o déficit público (que se tornaria o principal problema econômico do governo FHC), Serra criticou duramente a sobrevalorização do câmbio, a política de estímulo às importações e os juros elevados, que para ele eram custos desnecessários do plano. Os choques com Pedro Malan, da Fazenda, e Gustavo Franco, do Banco Central -os principais guardiões de uma moeda forte-, foram inevitáveis. Serra perdeu a batalha da desvalorização, mas conseguiu impor alíquotas a importações que melhoraram o perfil da balança comercial.
A corda, no entanto, arrebentou do lado de quem destoava, e Serra foi convencido por FHC a disputar, a contragosto, a eleição para a Prefeitura de São Paulo, em 1996, o que o afastou do debate sobre economia no governo federal.
Tendo ficado atrás de Celso Pitta e Luiza Erundina, que disputaram o segundo turno, Serra voltou a Brasília, para ocupar pela primeira vez a cadeira no Senado, que ganhara em 1994 com mais de 6 milhões de votos. Não chegou, porém, a esquentá-la.
Em março de 1998, assumiu o Ministério da Saúde, que seria a principal plataforma de lançamento de sua candidatura à Presidência da República com o apoio do Palácio do Planalto. Algumas de suas realizações -como a política de combate à Aids, a campanha contra o fumo e a introdução dos remédios genéricos- tiveram reconhecimento mundial.
Os adversários reconhecem em Serra consistência intelectual e competência. Quanto aos correligionários, acham que seria um bom presidente, embora para muitos ele não seja, necessariamente, um bom candidato, devido à antipatia que desperta em parte do eleitorado e até mesmo entre seus aliados.
O estilo de Serra também é uma incógnita, mesmo para a elite que o apóia. Tido como alguém que não compartilha o poder, Serra teria dificuldade em levar adiante arranjos partidários que garantiriam a eficiência e a estabilidade de seu governo. Por enquanto, o papel de agregador tem sido desempenhado sobretudo por FHC, o maior avalista do vôo do companheiro tucano.



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