São Paulo, segunda, 8 de junho de 1998

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Nos anos 90, conta que o pai escapou do naufrágio do Titanic

"Se não fosse isso, não estaria aqui agora, dando essa entrevista para o senhor", diz Havelange.
O "isso" trata-se do seguinte: depois de se formar engenheiro de minas no começo do século, Joseph Faustin trabalhou no Congo, mudando-se a seguir para o Peru, onde lecionou na Universidade de San Marcos e vendeu armas. No início da década de 10, ele volta para Liège (Bélgica), onde nasceu.
Passa uns tempos e decide sair definitivamente do Peru, onde tinha deixado negócios em aberto. Era preciso viajar para resolvê-los.
Faustin comprou um bilhete para o maior navio já construído, que sairia do porto de Southampton, na Inglaterra, no dia 10 de abril de 1912, rumo a Nova York, escala do comerciante para o sul da América. O navio era o Titanic.
Organizado e severo consigo, austero e disciplinado, traços que Jean-Marie, o segundo dos três filhos, herdaria, Joseph Faustin teria se atrasado no caminho entre Liège e Southampton, perdendo a viagem inaugural da embarcação.
Quatro dias depois de zarpar, meia hora antes da meia-noite, o Titanic bateria num iceberg. O naufrágio causou a morte de mais 1.500 passageiros no Atlântico.
Joseph Faustin se casaria no começo de 1913 com Juliette Ludivine Calmeau, conterrânea de Liège, e se muda para o Brasil, onde recomeça a vida vendendo armas e munição numa loja na esquina da rua da Alfândega com a Miguel Couto, a poucos metros de onde seria erguida a atual sede da CBF.
No andar de cima da loja, no dia 8 de maio de 1916, nasce o futuro presidente da CBD e da Fifa.
O primeiro dos filhos foi Jules, depois Júlio, o segundo Jean-Marie, o João, e o terceiro uma jovem muito bonita de nome Helena, que viria a se tornar quando adulta a secretária do irmão do meio.
Uma história, contada por Havelange, mostra como foi educado. Num passeio a uma fazenda, descontente com as notas do filho que acabara de ver no boletim, Joseph Faustin obrigou João a fazer um percurso de quilômetros a pé, enquanto a família seguia a cavalo.
O veto a cavalgadas, um dos prazeres do garoto, seria prolongado. Ao ver que o marido ameaçava recuar no dia seguinte, deixando passar quase em branco uma falta considerada grave, a mãe de Havelange falou: "Se foi castigado, tem que cumprir o castigo". Tudo em francês, o idioma doméstico.
No leito de morte, em 1945, Juliette pediu ao filho: nunca deixar de visitar parentes na Bélgica, onde há uma cidade chamada Havelange, terra de seus antepassados.
"Até hoje, todo ano, nas vésperas do Natal, e eles são 50, 60 pessoas, eu procuro reuni-los num almoço, come-se muito bem, eu fecho o negócio [restaurante". Faço isso todo o ano desde que minha mãe morreu."
Após a morte do pai, Havelange continua na faculdade de direito, onde se formaria advogado, e vai trabalhar na Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, primeiro no escritório, depois aprendendo técnicas de produção. Ao se demitir da empresa, mostra, mais uma vez, as marcas impressas pelo pai.
"Trabalhei seis anos lá. Depois, fui ao presidente e disse: "Agradeço tudo o que o senhor fez por mim, mas eu vou embora'. "O senhor não vai porque vou lhe pegar como meu secretário', ele disse. "Não quero'. "O senhor vai'. "Não vou'. Aí, ele virou-se e disse: "O senhor é teimoso como o seu pai!'."
"Eu disse: "O senhor nunca mais repita isso, teimoso é sinônimo de burro! Eu sou determinado, é diferente. Determinado é quem tem princípios. Meu pai também os tinha'. E disse antes de sair: "Nunca mais vou ter patrão na vida!'."
Num perfil de Havelange publicado em 1991 por um jornal brasileiro, escreveu-se: "nunca jogou uma partida de futebol". Seus adversários sempre o atacaram como um homem dos esportes aquáticos, "sem nada a ver com o futebol".
Pois o futebol, introduzido oficialmente no Brasil por Charles Miller no fim do século 19, foi a grande paixão do garoto João, que jogava num campinho, no Fluminense e no Liceu Franco-Brasileiro, onde foi campeão no colegial.
O futebol e o velho Joseph Faustin se tornariam incompatíveis para Havelange em pouco tempo, mas ele ainda não sabia disso.
Jogando de beque pela esquerda (é destro ao escrever, canhoto ao chutar e arremessava com as duas mãos no pólo aquático), Havelange foi campeão carioca juvenil em 1931, pelo tricolor das Laranjeiras.
O Fluminense, uma agremiação aristocrática, nascera como clube de futebol, quando o esporte era vetado a negros e pobres.
Anos antes de Havelange ganhar o título, um jogador mulato chamado Carlos Alberto se empanturrava de pó-de-arroz para clarear a pele e ser confundido com branco: eis a origem apelido "pó-de-arroz".
Em 1933, para permitir que negros e mestiços reforçassem clubes nobres e evitar a ida de craques para o campeonato da Itália, o futebol brasileiro se profissionaliza.
Com o campeonato feito como juvenil, o futuro de Havelange seria o profissionalismo, dizem amigos e não-amigos seus da época.
É aí que Joseph Faustin, temendo pelo futuro do filho numa carreira que então não oferecia perspectiva de ascensão social para um jovem branco de classe média, obriga João a abandonar o esporte.
"Antes de meu pai morrer, prometi a ele que atenderia ao pedido de ser nadador nos Jogos Olímpicos. Eu seria convidado para o profissionalismo no futebol, mas ele não queria."
Havelange sente tristeza por não ter sido futebolista? "Tristeza eu teria se não tivesse cumprido o que meu pai pediu. Eu gostava muito dele e de minha mãe. Se voltasse ao mundo faria tudo igual e igualzinho, mas iria querer que meu pai e minha mãe vivessem mais."
Segundo José Roberto Haddock Lobo, amigo de Havelange na época e hoje um dos seus inimigos, "João não saiu do futebol por decisão paterna, mas por influência". No caso, influência é eufemismo, considerando a relação que Joseph Faustin tinha com o filho.
Conformado, Havelange abandona o esporte vetado pelo pai e passa a se dedicar com obstinação monástica à natação e, depois, ao pólo aquático, esportes em que se consagraria como um dos melhores do Brasil e da América do Sul.
"O pai era quem o treinava", diz Haddock Lobo, três anos mais novo e nadador do Fluminense antes de Havelange. "Era um obstinado. Aos domingos, quando a piscina do Fluminense fechava, ele ia à ACM [Associação Cristã de Mo ços", no Castelo [centro do Rio", para não deixar de treinar."
No Fluminense, Havelange, um nadador de longas distâncias, principalmente nos 400 m e 1.500 m livre, bateria sucessivamente recordes cariocas e brasileiros.
Em 1932, tenta ir à Olimpíada de Los Angeles, mas fracassa, ainda com o pai vivo e são. Pior: é batido por um concorrente familiar, o irmão Júlio, nas eliminatórias. Em vez de se abater, reforça os treinos.
Em 1936, vai como nadador aos Jogos de Berlim -dois anos antes, Joseph Faustin havia morrido. Em 1952, está em Helsinque com o pólo aquático. Em Melbourne-56, chefia a delegação brasileira.
Apesar da fidelidade ao Fluminense, veste as cores do Botafogo-RJ no pólo, porque o tricolor resistia a introduzir a modalidade.
Na faixa dos 20 anos, dorme cinco horas por noite para estar cedo no clube. Em casa, passa três horas por dia arremessando a bola na parede. "Eu tinha um ombro..."
Em 1940, quando se muda para São Paulo e vai trabalhar como advogado da Auto Viação Jabaquara, associa-se ao Clube Espéria, para onde vai depois do expediente. Pega ônibus, bonde e vence a pé um brejo às margens do rio Tietê, tudo para treinar.
Em 1935 e 1936, ainda no Fluminense, Havelange venceria a Travessia de São Paulo a Nado, uma prova que pela tradição lembraria a atual a corrida de São Silvestre.
Em 1943, empata com um companheiro do Espéria, com o tempo de 50min35, 22 segundos mais rápido do que na conquista anterior.

Com a seleção brasileira de pólo aquático, Havelange foi campeão sul-americano em 1946, no Rio, e vice em 1952, em Lima (Peru). Apesar do seu destaque no país e no continente, não obteve marcas significativas mundialmente. Só se consagraria como cartola. Numa das travessias de São Paulo, disputada no rio Tietê, ele pega uma espécie mais grave de tifo, o tifo negro, e passa quatro meses de cama. "O médico disse: "De cada mil, se salva um'. E aqui estou." Em 1958, dias depois da festa pelo Copa da Suécia, completamente estafado, Havelange sofre um mal súbito que o deixa uma semana em coma. Recebe a visita do presidente Juscelino Kubitschek. Em 1992, é internado às pressas em Zurique (Suíça), a princípio com infecção ou intoxicação, mas o motivo nunca seria esclarecido. A esplêndida forma física ajudou a sua rápida recuperação com problemas de saúde. Até hoje, quando está no Rio, Havelange nada cerca de 1.000 m diariamente, a partir das 6h, e depois caminha 4 km. Quando está viajando, faz a mesma coisa. Dorme cinco horas por noite. Quando passa 72 horas acordado, em viagens (quando faz palavras cruzadas em português), dorme depois 24 horas sem abrir os olhos, se recuperando. "Cheguei em casa ontem à meia-noite. Tomei um banho. Nunca durmo sem me banhar. Tomo uma ducha tépida e me deito. Um minuto depois estou dormindo profundamente, durmo como se tivesse dormido dez horas. Acho que todo o organismo nosso é um músculo, que o senhor tem que botar para trabalhar." Os exercícios e a disciplina deram a Havelange o poder de praticamente não transpirar. No dia 17 de junho de 1994, com quase 40oC no Soldier Field, o estádio de Chicago onde começou a Copa, ele dividiu a tribuna com o presidente norte-americano Bill Clinton. O brasileiro estava de blazer claro. O americano, de blazer escuro. Clinton tirou-o, ficando em mangas de camisa e com o colete à prova de balas. Havelange, como sempre, manteve a fleuma, sem verter uma gota de suor pelo rosto. Ele conta: "Ainda há pouco, começamos uma reunião na Fifa às 9h30, ela terminou às 14h30. Eu não me levanto, eu não bebo água, não tomo café, faço a reunião". "Todo mundo se levanta, diz que a próstata incomoda, que isso e aquilo, não sei o quê. Eu faço um exame a cada três meses. Minha próstata tem 55 anos. Minha geriatra diz: "As suas artérias, o seu corpo por dentro têm menos 20 anos, têm 62 anos, por isso o senhor resiste a tudo'." Duas pessoas contaram à Folha, com a exigência de não terem o nome citado, como quase todas que depuseram sobre o homem mais poderoso do esporte mundial, que a preocupação de Havelange com a transpiração nasceu nas viagens à África, nos anos 70, na campanha para a Fifa. Ele teria consultado um príncipe europeu, que lhe ensinara a dominar as glândulas com a força da mente. "Não é que eu não vou suar, não suo jamais, assim é preciso pensar", dissera o príncipe, cujo irmão teria vivido no Brasil. Havelange nega, diz ser autodidata e jura que o príncipe é ficção. O currículo oficial de Havelange é quase um atestado da sua saúde. Recebido por fax, soma 5,10 m, quase três vezes o 1,83 m de altura na juventude e o 1,80 m atual (o peso foi de 85 kg para 92 kg).
Historia 13 cargos como dirigente esportivo; 39 condecorações estrangeiras, de 21 países; 36 condecorações no Brasil, as militares todas no período pré-Geisel; 36 títulos de cidadania honorária no exterior e no Brasil; 310 títulos, boa parte de sócio benemérito de entidades esportivas, indo de Defensor do Pantanal a associado 100 mil do Barcelona (Espanha).
A passagem mais curta do currículo, menos de um quarto de página, fala de "vida profissional" e "ocupações anteriores". Há sete itens: empregado (Belgo-Mineira) uma vez; membro do conselho, sem funções executivas, de três empresas e um colégio (no qual estudou); e, abrindo a lista, diretor-presidente da Viação Cometa S/A e da Orwec Química S/A.
Na escala de discrição da história de Havelange, a sua vida profissional só perde para a conjugal -é casado desde janeiro de 1946 com Anna Maria Hermanny Havelange, que raramente aparece com ele em público e é uma unanimidade, mesmo entre inimigos do marido.
Na Cometa, o aspecto menos alardeado da sua posição é que ele, ao contrário do que supõem os rivais, nunca foi o dono da empresa.
Na Orwec, usada como exemplo da boa situação financeira de Havelange às vésperas da eleição de 1974 para a Fifa, os sócios passavam por dificuldades, recorrendo a empréstimos para mantê-la.
Em 1940, aos 24, o advogado Havelange troca o Rio por São Paulo e passa a trabalhar na seção trabalhista da Auto Viação Jabaquara.
Com uma disposição que chamava a atenção, faz novas relações, principalmente por intermédio do esporte. Era atleta e já dirigente da Associação Desportiva Floresta, o antigo clube italiano Espéria, rebatizado quando o Brasil entrou na Segunda Guerra.
Em 1947, está entre os primeiros funcionários da Cometa, com uma participação quase simbólica. Atuando basicamente como relações-públicas, Havelange cresce.
"Seus contatos no esporte e o know-how adquiridos na Belgo- Mineira são úteis na aceleração do processo e no desembaraço alfandegário da importação de ônibus necessários ao crescimento da Cometa", afirma a biografia autorizada "Jovem Havelange".
"Os sócios detectam a sua habilidade no relacionamento com órgãos públicos e com autoridades em geral, ele é escolhido para diretor-presidente da empresa".
Havelange poderia ser chamado de lobista profissional. Era uma época em que a função básica dos presidentes de várias companhias não era executiva, mas de relações públicas. Ele continuava um funcionário, quebrando galhos, por vezes troncos, quando necessário.
Certa vez, o padre que batizou Havelange, transferido para Minas Gerais, mandava um menino mineiro passar férias na casa dos Havelange no Cosme Velho. O garoto, Juscelino Kubitschek, seria presidente da República (1956-61) e o homem mais fascinante que Havelange afirma ter conhecido.
JK ajudou várias vezes Havelange: "Uma vez tive um problema na Cometa, precisava falar com ele, fui a Brasília. Havia uma reunião na sala do Juscelino, ele saiu: "Havelange, você está aqui, o que você quer?'. "Estou com um problema na Cometa, se você puder ver para mim'. "Me dá que eu vou anotar'. Ele era assim, impressionante. Nunca vi homem igual."
Hoje, Havelange é o vice-presidente da Cometa, gigante do transporte rodoviário interestadual no Brasil. Assinou um compromisso com os controladores, os Mascioli, para, quando puder, voltar à presidência e lá ficar até a sua morte, embora poucas vezes, como nas últimas décadas, vá pôr os pés numa garagem de ônibus.
Em 1993, segundo registro na Junta Comercial de São Paulo, uma reunião em abril definiu os salários dos altos executivos, inclusive Havelange: na época, US$ 6.000, metade do que uma secretária com domínio de quatro idiomas pode ganhar na sede da Fifa.
Sobre a Cometa, ele diz: "Eu tenho algumas ações, mas tudo isso pertence a uma família, pessoas italianas que vieram para o Brasil e me consideram um filho."
Na Fifa, Havelange recebe ajuda de custo anual para manter um escritório no Rio, se hospedar e se alimentar onde quer que esteja.
Nos primeiros tempos de chefe do futebol mundial, jura ter colocado dinheiro do próprio bolso para pagar hotéis e despesas quando estava a serviço. Quanto? "Não vou dizer porque senão o Imposto de Renda vem em cima de mim. O senhor me perdoe, o senhor não diria também."
A história da Orwec Química e Metalurgia Ltda. (nome original) é tão complicada que se arrasta há 25 anos na Justiça do Rio. O ex-sócio José Roberto Haddock Lobo pede a liquidação da empresa, que teria passado de limitada a sociedade anônima sem o seu aval. Havelange não é nem mais dono da sua parte, vendeu-a há dois anos.



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