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Nos anos 90, conta que o pai escapou do naufrágio do Titanic
"Se não fosse isso, não estaria
aqui agora, dando essa entrevista
para o senhor", diz Havelange.
O "isso" trata-se do seguinte:
depois de se formar engenheiro de
minas no começo do século, Joseph Faustin trabalhou no Congo,
mudando-se a seguir para o Peru,
onde lecionou na Universidade de
San Marcos e vendeu armas. No
início da década de 10, ele volta para Liège (Bélgica), onde nasceu.
Passa uns tempos e decide sair
definitivamente do Peru, onde tinha deixado negócios em aberto.
Era preciso viajar para resolvê-los.
Faustin comprou um bilhete para o maior navio já construído,
que sairia do porto de Southampton, na Inglaterra, no dia 10 de
abril de 1912, rumo a Nova York,
escala do comerciante para o sul
da América. O navio era o Titanic.
Organizado e severo consigo,
austero e disciplinado, traços que
Jean-Marie, o segundo dos três filhos, herdaria, Joseph Faustin teria se atrasado no caminho entre
Liège e Southampton, perdendo a
viagem inaugural da embarcação.
Quatro dias depois de zarpar,
meia hora antes da meia-noite, o
Titanic bateria num iceberg. O
naufrágio causou a morte de mais
1.500 passageiros no Atlântico.
Joseph Faustin se casaria no começo de 1913 com Juliette Ludivine Calmeau, conterrânea de Liège,
e se muda para o Brasil, onde recomeça a vida vendendo armas e
munição numa loja na esquina da
rua da Alfândega com a Miguel
Couto, a poucos metros de onde
seria erguida a atual sede da CBF.
No andar de cima da loja, no dia
8 de maio de 1916, nasce o futuro
presidente da CBD e da Fifa.
O primeiro dos filhos foi Jules,
depois Júlio, o segundo Jean-Marie, o João, e o terceiro uma jovem
muito bonita de nome Helena, que
viria a se tornar quando adulta a
secretária do irmão do meio.
Uma história, contada por Havelange, mostra como foi educado. Num passeio a uma fazenda,
descontente com as notas do filho
que acabara de ver no boletim, Joseph Faustin obrigou João a fazer
um percurso de quilômetros a pé,
enquanto a família seguia a cavalo.
O veto a cavalgadas, um dos prazeres do garoto, seria prolongado.
Ao ver que o marido ameaçava recuar no dia seguinte, deixando
passar quase em branco uma falta
considerada grave, a mãe de Havelange falou: "Se foi castigado,
tem que cumprir o castigo". Tudo
em francês, o idioma doméstico.
No leito de morte, em 1945, Juliette pediu ao filho: nunca deixar
de visitar parentes na Bélgica, onde há uma cidade chamada Havelange, terra de seus antepassados.
"Até hoje, todo ano, nas vésperas do Natal, e eles são 50, 60
pessoas, eu procuro reuni-los
num almoço, come-se muito bem,
eu fecho o negócio [restaurante".
Faço isso todo o ano desde que minha mãe morreu."
Após a morte do pai, Havelange
continua na faculdade de direito,
onde se formaria advogado, e vai
trabalhar na Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira, primeiro no
escritório, depois aprendendo técnicas de produção. Ao se demitir
da empresa, mostra, mais uma
vez, as marcas impressas pelo pai.
"Trabalhei seis anos lá. Depois,
fui ao presidente e disse: "Agradeço tudo o que o senhor fez por
mim, mas eu vou embora'. "O senhor não vai porque vou lhe pegar
como meu secretário', ele disse.
"Não quero'. "O senhor vai'. "Não
vou'. Aí, ele virou-se e disse: "O senhor é teimoso como o seu pai!'."
"Eu disse: "O senhor nunca mais
repita isso, teimoso é sinônimo de
burro! Eu sou determinado, é diferente. Determinado é quem tem
princípios. Meu pai também os tinha'. E disse antes de sair: "Nunca
mais vou ter patrão na vida!'."
Num perfil de Havelange publicado em 1991 por um jornal brasileiro, escreveu-se: "nunca jogou
uma partida de futebol". Seus adversários sempre o atacaram como
um homem dos esportes aquáticos,
"sem nada a ver com o futebol".
Pois o futebol, introduzido oficialmente no Brasil por Charles
Miller no fim do século 19, foi a
grande paixão do garoto João, que
jogava num campinho, no Fluminense e no Liceu Franco-Brasileiro, onde foi campeão no colegial.
O futebol e o velho Joseph Faustin se tornariam incompatíveis para Havelange em pouco tempo,
mas ele ainda não sabia disso.
Jogando de beque pela esquerda
(é destro ao escrever, canhoto ao
chutar e arremessava com as duas
mãos no pólo aquático), Havelange foi campeão carioca juvenil em
1931, pelo tricolor das Laranjeiras.
O Fluminense, uma agremiação
aristocrática, nascera como clube
de futebol, quando o esporte era
vetado a negros e pobres.
Anos antes de Havelange ganhar
o título, um jogador mulato chamado Carlos Alberto se empanturrava de pó-de-arroz para clarear a
pele e ser confundido com branco:
eis a origem apelido "pó-de-arroz".
Em 1933, para permitir que negros e mestiços reforçassem clubes
nobres e evitar a ida de craques
para o campeonato da Itália, o futebol brasileiro se profissionaliza.
Com o campeonato feito como
juvenil, o futuro de Havelange seria o profissionalismo, dizem amigos e não-amigos seus da época.
É aí que Joseph Faustin, temendo
pelo futuro do filho numa carreira
que então não oferecia perspectiva
de ascensão social para um jovem
branco de classe média, obriga
João a abandonar o esporte.
"Antes de meu pai morrer, prometi a ele que atenderia ao pedido
de ser nadador nos Jogos Olímpicos. Eu seria convidado para o
profissionalismo no futebol, mas
ele não queria."
Havelange sente tristeza por não
ter sido futebolista? "Tristeza eu
teria se não tivesse cumprido o que
meu pai pediu. Eu gostava muito
dele e de minha mãe. Se voltasse ao
mundo faria tudo igual e igualzinho, mas iria querer que meu pai e
minha mãe vivessem mais."
Segundo José Roberto Haddock
Lobo, amigo de Havelange na época e hoje um dos seus inimigos,
"João não saiu do futebol por decisão paterna, mas por influência". No caso, influência é eufemismo, considerando a relação que
Joseph Faustin tinha com o filho.
Conformado, Havelange abandona o esporte vetado pelo pai e
passa a se dedicar com obstinação
monástica à natação e, depois, ao
pólo aquático, esportes em que se
consagraria como um dos melhores do Brasil e da América do Sul.
"O pai era quem o treinava", diz
Haddock Lobo, três anos mais novo e nadador do Fluminense antes
de Havelange. "Era um obstinado. Aos domingos, quando a piscina do Fluminense fechava, ele ia à
ACM [Associação Cristã de Mo
ços", no Castelo [centro do Rio",
para não deixar de treinar."
No Fluminense, Havelange, um
nadador de longas distâncias,
principalmente nos 400 m e 1.500
m livre, bateria sucessivamente recordes cariocas e brasileiros.
Em 1932, tenta ir à Olimpíada de
Los Angeles, mas fracassa, ainda
com o pai vivo e são. Pior: é batido
por um concorrente familiar, o irmão Júlio, nas eliminatórias. Em
vez de se abater, reforça os treinos.
Em 1936, vai como nadador aos
Jogos de Berlim -dois anos antes,
Joseph Faustin havia morrido. Em
1952, está em Helsinque com o pólo
aquático. Em Melbourne-56, chefia a delegação brasileira.
Apesar da fidelidade ao Fluminense, veste as cores do Botafogo-RJ no pólo, porque o tricolor resistia a introduzir a modalidade.
Na faixa dos 20 anos, dorme cinco horas por noite para estar cedo
no clube. Em casa, passa três horas
por dia arremessando a bola na
parede. "Eu tinha um ombro..."
Em 1940, quando se muda para
São Paulo e vai trabalhar como
advogado da Auto Viação Jabaquara, associa-se ao Clube Espéria, para onde vai depois do expediente. Pega ônibus, bonde e vence
a pé um brejo às margens do rio
Tietê, tudo para treinar.
Em 1935 e 1936, ainda no Fluminense, Havelange venceria a Travessia de São Paulo a Nado, uma
prova que pela tradição lembraria
a atual a corrida de São Silvestre.
Em 1943, empata com um companheiro do Espéria, com o tempo
de 50min35, 22 segundos mais rápido do que na conquista anterior.
Com a seleção brasileira de pólo
aquático, Havelange foi campeão
sul-americano em 1946, no Rio, e
vice em 1952, em Lima (Peru).
Apesar do seu destaque no país e
no continente, não obteve marcas
significativas mundialmente. Só se
consagraria como cartola.
Numa das travessias de São Paulo, disputada no rio Tietê, ele pega
uma espécie mais grave de tifo, o
tifo negro, e passa quatro meses de
cama. "O médico disse: "De cada mil, se salva um'. E aqui estou."
Em 1958, dias depois da festa pelo Copa da Suécia, completamente
estafado, Havelange sofre um mal
súbito que o deixa uma semana
em coma. Recebe a visita do presidente Juscelino Kubitschek.
Em 1992, é internado às pressas
em Zurique (Suíça), a princípio
com infecção ou intoxicação, mas
o motivo nunca seria esclarecido.
A esplêndida forma física ajudou
a sua rápida recuperação com problemas de saúde. Até hoje, quando
está no Rio, Havelange nada cerca
de 1.000 m diariamente, a partir
das 6h, e depois caminha 4 km.
Quando está viajando, faz a mesma coisa. Dorme cinco horas por
noite. Quando passa 72 horas
acordado, em viagens (quando faz
palavras cruzadas em português),
dorme depois 24 horas sem abrir
os olhos, se recuperando.
"Cheguei em casa ontem à
meia-noite. Tomei um banho.
Nunca durmo sem me banhar. Tomo uma ducha tépida e me deito.
Um minuto depois estou dormindo profundamente, durmo como
se tivesse dormido dez horas.
Acho que todo o organismo nosso
é um músculo, que o senhor tem
que botar para trabalhar."
Os exercícios e a disciplina deram a Havelange o poder de praticamente não transpirar. No dia 17
de junho de 1994, com quase 40oC
no Soldier Field, o estádio de Chicago onde começou a Copa, ele dividiu a tribuna com o presidente
norte-americano Bill Clinton.
O brasileiro estava de blazer claro. O americano, de blazer escuro.
Clinton tirou-o, ficando em mangas de camisa e com o colete à prova de balas. Havelange, como
sempre, manteve a fleuma, sem
verter uma gota de suor pelo rosto.
Ele conta: "Ainda há pouco,
começamos uma reunião na Fifa
às 9h30, ela terminou às 14h30. Eu
não me levanto, eu não bebo água,
não tomo café, faço a reunião".
"Todo mundo se levanta, diz
que a próstata incomoda, que isso
e aquilo, não sei o quê. Eu faço um
exame a cada três meses. Minha
próstata tem 55 anos. Minha geriatra diz: "As suas artérias, o seu
corpo por dentro têm menos 20
anos, têm 62 anos, por isso o senhor resiste a tudo'."
Duas pessoas contaram à Folha,
com a exigência de não terem o
nome citado, como quase todas
que depuseram sobre o homem
mais poderoso do esporte mundial, que a preocupação de Havelange com a transpiração nasceu
nas viagens à África, nos anos 70,
na campanha para a Fifa.
Ele teria consultado um príncipe
europeu, que lhe ensinara a dominar as glândulas com a força da
mente. "Não é que eu não vou
suar, não suo jamais, assim é preciso pensar", dissera o príncipe,
cujo irmão teria vivido no Brasil.
Havelange nega, diz ser autodidata e jura que o príncipe é ficção.
O
currículo oficial de Havelange é
quase um atestado da sua saúde.
Recebido por fax, soma 5,10 m,
quase três vezes o 1,83 m de altura
na juventude e o 1,80 m atual (o
peso foi de 85 kg para 92 kg).
Historia 13 cargos como dirigente esportivo; 39 condecorações estrangeiras, de 21 países; 36 condecorações no Brasil, as militares todas no período pré-Geisel; 36 títulos de cidadania honorária no exterior e no Brasil; 310 títulos, boa
parte de sócio benemérito de entidades esportivas, indo de Defensor do Pantanal a associado 100
mil do Barcelona (Espanha).
A passagem mais curta do currículo, menos de um quarto de página, fala de "vida profissional"
e "ocupações anteriores". Há
sete itens: empregado (Belgo-Mineira) uma vez; membro do conselho, sem funções executivas, de
três empresas e um colégio (no
qual estudou); e, abrindo a lista,
diretor-presidente da Viação Cometa S/A e da Orwec Química S/A.
Na escala de discrição da história
de Havelange, a sua vida profissional só perde para a conjugal -é
casado desde janeiro de 1946 com
Anna Maria Hermanny Havelange, que raramente aparece com ele
em público e é uma unanimidade,
mesmo entre inimigos do marido.
Na Cometa, o aspecto menos
alardeado da sua posição é que ele,
ao contrário do que supõem os rivais, nunca foi o dono da empresa.
Na Orwec, usada como exemplo
da boa situação financeira de Havelange às vésperas da eleição de
1974 para a Fifa, os sócios passavam por dificuldades, recorrendo
a empréstimos para mantê-la.
Em 1940, aos 24, o advogado Havelange troca o Rio por São Paulo
e passa a trabalhar na seção trabalhista da Auto Viação Jabaquara.
Com uma disposição que chamava a atenção, faz novas relações, principalmente por intermédio do esporte. Era atleta e já dirigente da Associação Desportiva
Floresta, o antigo clube italiano
Espéria, rebatizado quando o Brasil entrou na Segunda Guerra.
Em 1947, está entre os primeiros
funcionários da Cometa, com
uma participação quase simbólica.
Atuando basicamente como relações-públicas, Havelange cresce.
"Seus contatos no esporte e o
know-how adquiridos na Belgo-
Mineira são úteis na aceleração do
processo e no desembaraço alfandegário da importação de ônibus
necessários ao crescimento da Cometa", afirma a biografia autorizada "Jovem Havelange".
"Os sócios detectam a sua habilidade no relacionamento com
órgãos públicos e com autoridades em geral, ele é escolhido para
diretor-presidente da empresa".
Havelange poderia ser chamado
de lobista profissional. Era uma
época em que a função básica dos
presidentes de várias companhias
não era executiva, mas de relações
públicas. Ele continuava um funcionário, quebrando galhos, por
vezes troncos, quando necessário.
Certa vez, o padre que batizou
Havelange, transferido para Minas Gerais, mandava um menino
mineiro passar férias na casa dos
Havelange no Cosme Velho. O garoto, Juscelino Kubitschek, seria
presidente da República (1956-61)
e o homem mais fascinante que
Havelange afirma ter conhecido.
JK ajudou várias vezes Havelange: "Uma vez tive um problema
na Cometa, precisava falar com
ele, fui a Brasília. Havia uma reunião na sala do Juscelino, ele saiu:
"Havelange, você está aqui, o que
você quer?'. "Estou com um problema na Cometa, se você puder
ver para mim'. "Me dá que eu vou
anotar'. Ele era assim, impressionante. Nunca vi homem igual."
Hoje, Havelange é o vice-presidente da Cometa, gigante do
transporte rodoviário interestadual no Brasil. Assinou um compromisso com os controladores,
os Mascioli, para, quando puder,
voltar à presidência e lá ficar até a
sua morte, embora poucas vezes,
como nas últimas décadas, vá pôr
os pés numa garagem de ônibus.
Em 1993, segundo registro na
Junta Comercial de São Paulo,
uma reunião em abril definiu os
salários dos altos executivos, inclusive Havelange: na época, US$
6.000, metade do que uma secretária com domínio de quatro idiomas pode ganhar na sede da Fifa.
Sobre a Cometa, ele diz: "Eu
tenho algumas ações, mas tudo isso pertence a uma família, pessoas
italianas que vieram para o Brasil e
me consideram um filho."
Na Fifa, Havelange recebe ajuda
de custo anual para manter um escritório no Rio, se hospedar e se
alimentar onde quer que esteja.
Nos primeiros tempos de chefe
do futebol mundial, jura ter colocado dinheiro do próprio bolso
para pagar hotéis e despesas quando estava a serviço. Quanto?
"Não vou dizer porque senão o
Imposto de Renda vem em cima
de mim. O senhor me perdoe, o
senhor não diria também."
A história da Orwec Química e
Metalurgia Ltda. (nome original) é
tão complicada que se arrasta há
25 anos na Justiça do Rio. O ex-sócio José Roberto Haddock Lobo
pede a liquidação da empresa, que
teria passado de limitada a sociedade anônima sem o seu aval. Havelange não é nem mais dono da
sua parte, vendeu-a há dois anos.
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