São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A HIPERPOTÊNCIA

Apesar de o sucesso inicial da ofensiva militar contra o regime do Taleban e contra a rede terrorista Al Qaeda, no Afeganistão, sugerir que o poder americano seja algo inigualável atualmente, Joseph Nye, um dos papas do estudo das relações internacionais e autor de dezenas de livros e artigos sobre o tema, crê que o agravamento do unilateralismo dos EUA abale sua influência sobre o restante do planeta, o que reduz o alcance de seu poder internacional

"Unilateralismo enfraquece EUA"

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

O unilateralismo dos EUA, intensificado após 11 de setembro, mina sua influência cultural e ideológica sobre o restante do planeta, reduzindo seu poder global.
A análise é de Joseph Nye, reitor da Kennedy School of Government da Universidade Harvard (EUA), que foi consultor do Departamento de Estado e presidente do Conselho de Segurança Nacional dos EUA. Leia a seguir trechos de sua entrevista à Folha.

Folha - Os EUA são mais poderosos hoje, pois podem demonstrar mais explicitamente seu poder?
Joseph Nye -
Uma reputação de poder cria poder. Assim, o sucesso do poder militar americano durante a ofensiva inicial no Afeganistão -país antes classificado de cemitério de Exércitos invasores- acentua o poder do país.
Contudo o poder é composto por muito mais do que só a força militar. A vulnerabilidade a um ataque terrorista transnacional, como a que os EUA conhecem desde 11 de setembro último, não pode ser dissipada apenas por meio do uso do poder militar.
A prevenção de novos atentados requer uma estreita cooperação com outros países em áreas eminentemente civis. Isso depende, em parte, do poder de atração, do "soft power" [a força internacional de um país que advém de sua influência cultural e ideológica sobre o restante do planeta] dos EUA. E o unilateralismo americano, intensificado após os ataques, mina seu "soft power", diminuindo seu poder global.

Folha - Para o professor Stanley Hoffmann, os EUA estão diante de um novo desafio. De um lado, o país sofre a tentação de lançar-se numa cruzada unilateral na cena internacional. Por outro lado, a alternativa seria não se proteger das novas ameaças. Como Washington pode resolver esse dilema?
Nye -
Hoffmann tem razão no que concerne à análise do problema, já que esse dilema realmente existe. Sua solução requer uma combinação de "hard power" [a utilização de instrumentos militares e econômicos para coagir outros atores políticos, econômicos ou sociais a fazer o que eles não querem] com "soft power".
Na guerra ao terrorismo, o poder militar foi necessário para pôr fim ao regime do Taleban, que dava abrigo e proteção à Al Qaeda [rede terrorista de Osama bin Laden] no Afeganistão. Todavia ele não foi suficientemente eficaz para acabar com a Al Qaeda, que é uma organização internacional com células em cerca de 50 países.
Isso requer uma intensa troca de informações, um trabalho policial sem fronteiras, uma estreita cooperação entre autoridades alfandegárias de inúmeros Estados e a localização e o sufocamento dos fluxos financeiros que bancam atos terroristas.

Folha - Alguns analistas argumentam que os aspectos do poder americano são tão variáveis e tão duráveis que o país goza hoje de mais liberdade na concepção de sua política externa do que qualquer outra potência da história moderna. Porém o sr. sustenta que "a única superpotência do mundo não pode agir sozinha". Como explicar essa aparente contradição?
Nye -
Em parte, os analistas têm razão. Como argumento em meu último livro, "The Paradox of American Power" [o paradoxo do poder americano], é difícil imaginar que algum país possa substituir os EUA no campo do poder militar nas próximas décadas.
Contudo o que não está correto nessa análise é que ela pressupõe que essa unipolaridade militar signifique que os EUA podem obter os resultados que desejam em todas as áreas. Para mim, o poder é, atualmente, algo como um jogo de xadrez tridimensional.
No tabuleiro mais elevado, o do poder militar, o mundo é unipolar e deverá permanecer assim durante muito tempo. No tabuleiro do meio, o do poder econômico, o mundo é multipolar, pois o poder econômico europeu pode equiparar-se ao americano. No tabuleiro de baixo, o das relações transnacionais que ignoram fronteiras e fogem ao controle dos governos, no qual há o terrorismo, não faz sentido falar em unipolaridade ou em multipolaridade.
Trata-se de um novo desafio. No último tabuleiro, a estrutura de poder é caótica, o que obriga os governos, incluindo o dos EUA, a cooperar entre si. Se não o fizerem, não conseguirão enfrentar os desafios existentes nessa esfera.

Folha - O sr. crê que a teoria do "choque de civilizações", descrita pelo professor Samuel Huntington, que foi popularizada após 11 de setembro, possa tornar-se realidade?
Nye -
Não vejo o que ocorreu em 11 de setembro último como uma prova do choque de civilizações. Creio que seja exatamente isso que Osama bin Laden queria quando planejou os atentados. Porém, por enquanto, o Ocidente ainda não caiu nessa armadilha.
Seria mais apropriado classificar os ataques terroristas aos EUA de uma guerra civil dentro do islã, que opõe os moderados aos extremistas, como Bin Laden. Se os EUA tivessem ficado atolados no Afeganistão, como ocorreu com os soviéticos na década de 80, talvez os extremistas obtivessem uma fonte contínua de força.
Devemos tomar muito cuidado com esse tipo de questão. Afinal, é crucial entender a diferença existente entre os muçulmanos moderados e os extremistas. Não podemos permitir que a idéia do choque de civilizações se torne uma profecia que se auto-realiza.

Folha - Redes terroristas são, portanto, um tipo perverso de globalização, já que, desde os atentados aos EUA, descobrimos que elas são financiadas globalmente e possuem a capacidade de realizar ataques fora de seu "território"?
Nye -
Como argumento em meu livro mais recente, as redes terroristas fazem parte da globalização. É importante perceber que a globalização tem aspectos tanto positivos quanto negativos.
Às vezes, os economistas tendem a dizer que a globalização é um fenômeno puramente econômico e benéfico. Todavia ela também inclui dimensões militares, sociais e ambientais. O terrorismo transnacional, como a disseminação de doenças infecciosas ou a mudança global do clima, é uma das faces nefastas da globalização.


Texto Anterior: Nova doutrina: Bush se reinventou após ataques
Próximo Texto: Geopolítica: Discurso multilateralista dura pouco
Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.