São Paulo, domingo, 08 de setembro de 2002

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Dimensões críticas da queda

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Se ao menos as torres não tivessem caído..." Foi assim que concluiu um colega americano, de Nova York, a quem fiz recentemente a infalível questão sobre o impacto do evento fatídico. A conversa foi numa reunião acadêmica em Oxford, e a resposta veio num tom entre o enigmático e o melancólico. Refletindo pouco depois sobre aquela frase intrigante, imaginei que ele se referisse ao fato, mais do que óbvio, de que, se os prédios não tivessem ruído, grande parte da catástrofe, sobretudo as terríveis perdas humanas e das equipes de resgate, teriam sido bastante minimizadas. Mas isso era óbvio demais. O olhar compenetrado e a voz arrastada com que ele pronunciou aquelas palavras sugeriam que houvesse algo mais etéreo na sua mente.
De fato, o simbolismo da queda é particularmente sensível na cultura calvinista anglo-saxônica. Afinal, o texto poético mais representativo nessa tradição, de uma inspirada força devocional, é o "Paraíso Perdido", de Milton, centrado no tema da queda. Por outro lado, a verticalidade se tornou um dos mais fortes emblemas da modernidade. Daí o impacto instantâneo que os primeiros arranha-céus tiveram, no imaginário das várias sociedades, passando por diferentes graus de urbanização ao redor do mundo, assim que surgiram, pioneiramente, em Chicago e em Manhattan. Desde então, a pujança econômica dos Estados Unidos foi condensada na imagem dos seus conjuntos de edifícios, reproduzidos de mil formas através do globo, ao ponto de qualquer criança, em qualquer parte, saber reconhecer os prédios mais altos, os mais elegantes e os mais simbólicos. Até King Kong sabia.
Mas não são só os arranha-céus. No mundo capitalista, tudo o que conta fica no topo de uma coluna vertical, como se fora uma sucessão de paus-de-sebo, no alto dos quais, em vez do tradicional chouriço, estivesse o bilhete premiado de uma loteria. Por exemplo, esse mantra através do qual a ciência econômica assinala e louva o sucesso, as tabelas e colunas estatísticas. Ou a infinidade de rankings que se multiplicam e a tudo se aplicam, da memória de um logotipo, à vendagem de um desodorante, à imagem de um político. O que conta e só o que vale é ser o número um, é estar no topo, na crista da onda, nas alturas.
Mais que isso. Muito se discute sobre qual o esporte de maior popularidade entre os norte-americanos. Seria o beisebol, o futebol americano ou o basquete? Não, obviamente é o boxe. Nenhum outro esporte suscita tamanha paixão e tais escalas de apostas e investimentos por evento. E, no boxe, o que decide o destino de um atleta ou de uma carreira é o nocaute, quando as duas pernas fraquejam e o corpo desaba batido.
Como quer que seja, acaso ou não, o fato é que, desde aquele dia fatal, muitas coisas começaram senão a cair, pelo menos a declinar vistosamente. Não por conta do evento, nem necessariamente relacionadas a ele, mas porque ele de um lado catalisou processos em curso e de outro desnudou fantasias e véus que bloqueavam uma percepção mais crua dos fatos.
Nos primeiros momentos, assimilada a comoção do impacto e da tragédia, abriu-se um panorama surpreendentemente otimista. A crise obrigara a administração Bush a sair do seu casulo isolacionista e a se abrir para o maior leque de alianças externas desde a Segunda Guerra, conseguindo adesões tão inusitadas como Cuba, Vietnã, Rússia, China e Irã. O mundo parecia ter encontrado um novo nexo de coerência, capaz de articular formas de solidariedade as mais promissoras. Foi a breve quimera do efeito Colin Powell.
Por trás dessa corrente de apoio, porém, fermentavam processos mais soturnos. Internamente nos Estados Unidos se criou um ambiente intolerante contra qualquer dissonância em relação ao discurso oficial. Vozes que trouxessem alguma conotação crítica ou sequer alternativa, fossem de esquerda, como Susan Sontag, ou até de direita, como Chalmers Johnson, se arriscavam a algo próximo ao linchamento de suas reputações. No exterior, os aliados da coalizão aproveitavam para taxar de terroristas seus oponentes, aproveitando a onda internacional para abrir temporadas de atrocidades impunes contra seus adversários locais.
Esse aliás parece ter sido um dos efeitos mais significativos do episódio, a configuração semântica de uma extensão sem precedentes da figura do "terrorista", mesclado de tinturas entre diabólicas e apocalípticas. A imagem se estende para além daqueles que ameaçam a vida de pessoas inocentes em nome de alguma causa, para engolfar todos os que, insistindo nas garantias legais, direitos individuais e de minorias, são acusados de estar acumpliciados, acobertando ou fomentando o terrorismo. Divergir em idéias, aspirações, comportamento ou até na aparência se tornou um estigma. Um anúncio recente da campanha contra os tóxicos nos Estados Unidos adverte: "Quando você compra drogas, você está fornecendo dinheiro para os terroristas".
Uma série de iniciativas estranhas à louvada tradição jurídica americana convergiu para reforçar essa tendência sombria. A adoção de leis contra o terror pelo Congresso, com um único voto discordante, a criação da figura dos "combatentes ilegais", a detenção por tempo indeterminado, a proposição dos tribunais militares, da escuta clandestina inclusive às audiências com advogados, dos julgamentos a portas fechadas, sem falar dos obscenos encorajamentos ao debate sobre a validade da tortura, são passos que caminham aos calafrios para o obscurantismo.
Não faltam os "spin doctors" dispostos a propor os fundamentos para um rearranjo institucional e estratégico. Numa obra recente e de grande repercussão, o especialista em direito constitucional e estratégia nuclear Philip Bobbitt descreve a rede Al Qaeda como um estado virtual. Ela seria o contraponto lógico de Estados-nações que adquiriram uma nova porosidade com a globalização, transformando-se no que ele chama de Estados-mercado. Há nesse sentido um desprendimento simétrico, tanto dos Estados quanto de seus inimigos, em relação a limites territoriais e institucionais.
Como o inimigo agora é invisível e pode estar em toda parte, é preciso haver uma coalizão defensiva centralizada e de alcance global. A ênfase do sistema de defesa deve mudar da posição agressiva da ameaça do ataque destrutivo para a estratégia da localização e defesa das vulnerabilidades. Daí a importância crucial que assumem os sistemas de inteligência, perscrutando todos os desvãos da vida social, pública e privada, no âmbito interno tanto quanto no exterior. Vai nessa direção a proposta a ser decidida, neste mês, de retenção de todos os e-mails de cidadãos da União Européia por um período de 12 a 24 meses, para disponibilizá-los aos serviços locais e internacionais de segurança. Como declarou o editor da "Statewatch", "é uma iniciativa para se passar da vigilância localizada à universal".
Dentro desses mesmos pressupostos, a administração Bush vem tentando consolidar a idéia da adoção da tática dos ataques preventivos. Esse tipo de iniciativa bélica unilateral é categoricamente proibido pelo artigo 51 da Carta da ONU. Quando em 7 de junho de 1981 Israel desfechou um ataque aéreo surpresa, destruindo os reatores nucleares do Iraque em Osirak, os membros da ONU condenaram em massa a ação. Foi uma das únicas vezes em que os Estados Unidos se juntaram à censura geral, acusando e advertindo Israel. No novo panorama, é agora a administração Bush quem pretende legitimar a tática preventiva, com ou sem apoio da ONU ou dos aliados.
Por que tanta gana? As razões podem ser obscuras e nem sempre as melhores, mas ninguém discordará de que são fortes. Um relatório do "think tank" conservador Rand Corporation, que vazou no início de agosto, aponta a Arábia Saudita como "o núcleo do mal", identificando as relações comprometedoras de figuras-chave da casa real, da sociedade, das finanças e negócios, com a Al Qaeda. A idéia de um ataque americano aos sauditas fez trepidar as Bolsas pelo mundo.
Para a administração, a idéia de instabilidade na Arábia aumenta a cobiça pelo controle do Iraque, a segunda maior reserva mundial de petróleo.
O projeto do ataque ao Iraque, porém, implica noutra dimensão de riscos. Quando o pai de Bush desencadeou a Operação Tempestade no Deserto, consumiu US$ 80 bilhões de recursos do mercado, que custaram ao mundo uma recessão e a ele a derrota eleitoral. Mas aquela foi uma guerra paga sobretudo pelos sauditas, pelo Kuait e pelo Japão. Uma nova guerra teria de ser paga pelos contribuintes americanos, num contexto de desemprego crescente, declínio dos mercados e um crescente déficit público causado exatamente pelas despesas militares. Imagine o impacto sobre a economia mundial. Mas há mais.
Qualquer perturbação no volátil mercado do petróleo provoca reações especulativas. A própria administração Bush, estrategicamente, está estocando grandes quantidades de óleo, a perspectiva é chegar a 700 milhões de barris, o que já se reflete nos aumentos do preço, atualmente ao redor de US$ 25, dos quais entre 10% e 15% já são o custo do riscos da guerra. Mas iniciadas as hostilidades tudo se torna imprevisível. O Iraque pode destruir poços do Kuait e da Arábia, ou as turbulências podem desestabilizar a casa saudita, desencadeando a ação de grupos radicais. Imagine o que seria do mundo, já em recessão, com o barril a US$ 60. Imagine o que seria do Brasil.
Por que então assumir o risco e por que agora? Bem, as eleições que entremeiam seu mandato estão logo aí, em novembro. Bush e seus assessores são claros quanto ao seu ambicioso projeto eleitoral. Pretendem reconquistar o controle do Senado, garantir a maioria da Câmara e, não menos estratégico, obter o controle dos Estados decisivos para alisar o caminho da reeleição do presidente em 2004. O que, claro, inclui a preciosa Flórida do irmão Jeb. Bush não quer repetir o destino e queda de seu pai. Mas, na miopia envolvida na sua desmedida ambição política, pode ouvir de seus adversários a mesma advertência que enterrou as chances de Bush Pai. "It's the economy, stupid!"


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura na USP e autor de, entre outros livros, "Orfeu Extático na Metrópole" (Cia. das Letras)

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