São Paulo, terça-feira, 09 de julho de 2002

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NARCOTRÁFICO

MÚSICOS SÃO OS NOVOS ÍDOLOS DE VIGÁRIO GERAL

Ierê Ferreira/Divulgação
O vocalista do Afro Reggae Anderson Sá, 23, que prestou "pequenos favores" a traficantes antes de entrar nas oficinas do grupo



Muitos jovens moradores de favelas escolhem o trabalho no narcotráfico em busca de poder e dinheiro. Em comunidades pobres de todo o país, são os traficantes que representam o poder de vida e morte de seus moradores. Em oposição ao narcotráfico, ONGs como o Afro Reggae lutam para resgatar os jovens do crime, oferecendo outros exemplos de vida.


CÉSAR GUERRA CHEVRAND
DA EQUIPE DE TRAINEES

Na adolescência, Anderson Sá, 23, pensava em seguir os passos dos traficantes de Vigário Geral (zona norte do Rio), favela em que nasceu.
Revoltado com a condição em que viviam sua família e amigos, Anderson diz ter acreditado que o crime era o único jeito de sair daquela situação.
"Eu entrei numa de querer sequestrar, roubar, para investir socialmente na comunidade. Eu queria construir um hospital ou uma escola com o dinheiro do tráfico", afirma.
De acordo com Anderson, os traficantes eram a única referência de ascensão e poder para os jovens de Vigário Geral.
"A gente brincava de polícia e ladrão e se apelidava com nome de traficante. Nós não tivemos nossos pais como vitrine. Nós tivemos o pessoal do tráfico, que tinha as melhores mulheres, o poder da arma, carro, moto", diz.
Seduzido por esse status, Anderson se aproximou dos traficantes de Vigário Geral e lhes prestou "pequenos favores". Chegou a ser convidado por um amigo a assumir a gerência de um ponto de venda de drogas.
A pressão dos pais para que andasse na linha e as primeiras oficinas no Grupo Cultural Afro Reggae, porém, mudaram sua cabeça.
Interessado por capoeira, Anderson procurou o grupo e passou por diversas oficinas musicais até se tornar coordenador do Centro Cultural Vigário Legal e vocalista da banda Afro Reggae.
Depois de conhecer a Europa em turnê e dar uma vida melhor à sua família, Anderson diz que é um novo exemplo para os jovens da favela em que nasceu.
"Com o Afro Reggae, eu ajudo vários jovens e sou espelho dentro da comunidade. É muito gratificante ver o cara tocando na lata a minha música", afirma.

Áreas de risco
A história de Anderson é semelhante a de muitos outros meninos e meninas das comunidades onde atua o Grupo Cultural Afro Reggae (GCAR).
A ONG foi criada em 1993 a partir da reunião de jovens interessados em música e cultura negra. As primeiras atividades foram a realização de festas e a edição de um jornal, para a difusão de suas idéias e encontros.
Segundo José Júnior, 33, um dos fundadores e atual coordenador-executivo do Afro Reggae, seu desejo era realizar um trabalho social que afastasse os jovens pobres do narcotráfico e do subemprego.
Nenhum dos fundadores era de Vigário Geral. A aproximação com os moradores aconteceu após a chacina em que 21 pessoas foram assassinadas, em 1993.
A favela controlada pelo Comando Vermelho foi eleita o palco ideal para o desenvolvimento das atividades do GCAR.
Além de servir como cenário da chacina, Vigário ocupava as páginas policiais pelos conflitos com Parada de Lucas, comunidade vizinha dominada pela facção rival Terceiro Comando.
Moradores das duas favelas haviam se enfrentado nas praias da zona sul, em um dos primeiros arrastões registrados.
Quase dez anos depois, o Afro Reggae passou a atuar em mais três comunidades do Rio: Parada de Lucas, Cantagalo (zona sul) e Cidade de Deus (zona oeste).
Em cada núcleo são realizadas atividades diferentes como oficinas culturais e programas de saúde. São mais de 800 pessoas envolvidas diretamente, quase todas da própria comunidade.
O trabalho da ONG é elogiado por artistas que também passaram por dificuldades em sua juventude, como o guitarrista do Cidade Negra, Da Gama, 39.
Nascido em Belfort Roxo (Baixada Fluminense), Da Gama afirma que "os jovens que atuam hoje em música ou teatro passaram a existir a partir do momento em que essas ONGs passaram a existir dentro das comunidades".

Fantasia
Para disputar os jovens das comunidades com o narcotráfico, José Júnior afirma que se "fantasiava todo" com roupas de grifes famosas em suas visitas à favela.
Júnior conta que os rapazes logo se aproximavam para saber como ele conseguira aquelas roupas. Segundo ele, tênis Nike em Vigário Geral era privilégio dos traficantes da área.
"Muitas vezes a gente tem que contar com isso para que eles vejam que é possível ter as coisas sem precisar ser bandido", diz.
Embora afirme que é preciso "reverter esse conceito de que vencer na vida é ganhar dinheiro", o GCAR utiliza os mesmos elementos de sedução do crime organizado: o poder e a possibilidade de ascensão social.
Hoje em dia, com a visibilidade do trabalho, a imagem dos músicos da favela na televisão rivaliza com o poder dos traficantes.
O coordenador do Programa de Políticas Públicas e Globalização do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), Atila Roque, 42, ressalta a força simbólica da ação do GCAR. "Ainda que nem todos se tornem músicos famosos, o trabalho oferece aos garotos a possibilidade de romper com os limites territoriais, culturais e simbólicos em que vivem", afirma.
Os integrantes do Afro Reggae afirmam que a adesão dos jovens de Vigário Geral ao trabalho da ONG é tão grande que o tráfico de drogas local precisou "importar" mão-de-obra de bairros vizinhos.

Exército de reserva
Ainda assim, todos afirmam que não há conflito ou acordo com traficantes. Por mais jovens que o Afro Reggae afaste, sempre haverá um "exército" disposto a ingressar na atividade.
"A gente não é o Estado. Pra reverter essa situação tem que haver a junção da sociedade civil, do poder público e das empresas privadas", diz José Júnior.
O coordenador de comunicação Athayde Motta, 39, da ONG Afirma (que trata de assuntos relativos a direitos humanos e racismo), também acredita que apenas a colaboração das três esferas de poder poderia afastar definitivamente os jovens do narcotráfico.
"O trabalho do Afro Reggae tem um impacto muito positivo em Vigário Geral, mas, para resolver todos os problemas dessas comunidades, seria necessário criar um Ministério do Afro Reggae", diz.



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