São Paulo, sexta, 9 de outubro de 1998

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COMUNISMO DAS APARÊNCIAS, RESULTANTE DA DEMOCRATIZAÇÃO DO CONSUMO GLOBALIZADO, MASCARA AS DISTÂNCIAS SOCIAIS
Cenas de um shopping de luxo

ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local

Ele planeja conhecer Paris no ano que vem. "Tenho fetiche pela Europa." Ela já conhece (o Velho Continente). Esteve lá antes de morar quatro meses em Nova York. "São lugares que nos fazem sentir como cidadãos sem fronteiras."
Ele devora informações -de todo tipo e extraídas de qualquer meio: televisão, jornais, revistas, Internet. "Preciso saber de tudo, principalmente do que se passa no mundo. Odeio parecer uma criança trancada dentro do quarto, sem noção da rua."
Ela também valoriza informações. "Não há nada como o contato com culturas diferentes. É tão importante quanto estudar em boas escolas."
Ele frequenta diariamente o shopping Iguatemi, o mais tradicional e nobre de São Paulo. Ela passa por ali toda semana. Não gosta de nenhum outro na cidade. "Aprecio o nível das lojas."
Os dois usam grifes estrangeiras (calça da Guess, camiseta da Gap, terninho Kenzo), compram comidas importadas (massas Barilla, minicenouras Bunny-Luv, sopas Campbell's), dançam nos clubes paulistanos de pretensões cosmopolitas (Lov.e, B.A.S.E, Florestta) e votaram em Fernando Henrique Cardoso para presidente.
Solteiros, jovens, ela pontua conversas com sorrisos, ele cultiva perfil mais blasé, embora não descuide da polidez. São tão parecidos, poderiam se casar?

Sem sobrenome e disfarçado de bacana
Ele -o rapaz de 1m91, 24 anos, olhos azuis e cabelos muito curtos- ganha entre R$ 1.500 e R$ 2.000 por mês ("varia com a maré"). Vende roupas femininas numa loja do shopping Iguatemi.
Ela -a moça de 1m62 "e meio", 28 anos, olhos castanhos e "cabelos selvagens"- goza de uma renda mensal que gira em torno dos R$ 30 mil. É empresária e já fez compras na loja onde ele trabalha.
Chama-se Fernanda (os amigos a tratam por Fê). Mostra o rosto, mas omite o sobrenome. Não deseja "devassar a intimidade da família" -e, claro, teme "a violência", receia que a localizem em listas telefônicas ou de endereços. "Prefiro não aparecer tanto."
Ele, Alexandre Augusto Cogo, o Alê, enfatiza que não tem nada para esconder. "Quer saber o quê? O número do meu telefone, do RG? Eu dou." Só não dá o nome da loja em que trabalha. Orientação da chefia. A loja, requintada, costuma figurar na mídia, em anúncios publicitários ou colunas sociais.
O abismo que separa um universo de outro -o dos que "preferem não aparecer tanto" e o dos que "não têm nada para esconder"- é notícia velha. O topo da pirâmide social permanece no topo. E a ala dos remediados segue remediada.
A novidade no Brasil de FHC é justamente aquilo que diminui a distância entre os dois mundos. O verniz que torna o Alê tão parecido com a Fê.
Eles próprios explicam. "Nasci na periferia de São Paulo e sempre morei em bairros pobres, lugares que o pessoal do rap chama de "quebrada'. Há uns anos, nem sonhava que poderia viajar para o exterior, ler revistas estrangeiras ou usar roupas importadas. Eram coisas de rico", diz Alexandre.
"Eram mesmo", confirma Fernanda. "Mas hoje dá para confundir. Nem sempre quem está com uma bolsa DKNY, um tênis Nike ou um óculos Armani tem berço de ouro. Sei de pessoas que compram importados em cinco, seis prestações. Um sacrifício."
Confundir é o verbo que, para o rapaz suburbano e a moça "high society", melhor define o período FHC.
O presidente agora reeleito se esforçou por consolidar no país uma espécie de democracia do consumo. Alardeou que, sob sua gestão, os muito pobres comeram mais frango (e, assim, se confundiram com os menos pobres).
A classe média teve maior acesso a marcas e produtos que abastecem lares do Primeiro Mundo (globalizou-se e, assim, se confundiu com os ricos, desde sempre globalizados).
A democracia do consumo produziu, então, o comunismo de aparências. E o comunismo de aparências aproximou a Fê do Alê. Será que poderiam se casar?
De novo, a pergunta ficará em suspenso. Convém, antes de arriscar qualquer resposta, que Alexandre e Fernanda se conheçam. Onde se encontrariam? No shopping Iguatemi, por que não? Território hábil em confundir. Como diz o Alê: "Os gatos de lá são todos pardos. Se um cara da periferia cuidar do visual, acaba se camuflando no meio das lojas chiques e pode passar tranquilamente por bacana, ainda que use grifes falsificadas".
Aplica-se, aqui, a mesma regra que "os bacanas" adotam quando estão em um estádio de futebol. "Na entrada do Pacaembu", conta Alexandre, "cansei de ver caras saindo de Mercedes ou BMW com gorro, barba por fazer, agasalho largo, tênis rasgado. Disfarçam-se de malandro. Estádio é o único lugar em que vale a pena parecer malaco".
No Iguatemi, não. "Vale a pena parecer moderno, um sujeito que tanto poderia viver em São Paulo quanto em Nova York ou Londres." Quem telefonar agora para o número 011/816-6116 escutará uma secretária eletrônica apregoar: "Iguatemi, o shopping melhor frequentado do Brasil, agradece sua ligação".
O slogan delimita as fronteiras. Há "o shopping melhor frequentado do Brasil" e os outros. Por extensão, estar no Iguatemi significa comungar um universo seleto, em que "todos os gatos", como diria o Alê, viram siameses.
O que um ambiente tão distinto tem a oferecer? Talvez o maior orgulho do Iguatemi sejam, hoje, as "lojas globalizadas" -oásis de prosperidade que chegaram recentemente da Europa e dos Estados Unidos.
Fundado há 32 anos, o shopping ganhou, em 1998, filiais da Emporio Armani, Pepe Jeans, DKNY, Just Kenar e Clinique (as quatro primeiras vendem roupas; a última, cosméticos).
E se, naqueles corredores, entre paletós italianos e perfumes franceses, o Alexandre-vendedor-disfarçado-de-bacana encontrasse a Fê-sem-sobrenome? Poderiam se casar?

Bill Clinton e Tony Blair abrem as portas
Disfarce por disfarce, Fernanda também tem os dela. "Espie só meus cabelos. Em geral, são crespos, meio selvagens. Mas, às vezes, os aliso e deixo as pontas enrolarem. Fico mais arrumada, com cara de patricinha. Não gosto. É uma espécie de disfarce, que agrada meu pai e que uso apenas em situações formais. No dia-a-dia, sou simples, detesto que me tomem por patricinha."
O rótulo incomoda a Fê porque a "desumaniza". "As pessoas pensam que patricinha não sofre, não tem sensibilidade social."
Sem contar que patricinha aparece na revista "Caras". Fernanda nunca apareceu. Nem quer. "É fútil demais."
No entanto, sua família já abriu a casa para a "Vogue". "Participamos de um ensaio sobre decoração, muito informativo. Bem diferente das reportagens de "Caras', que priorizam fofocas e se limitam àquele mundinho cor-de-rosa."
Cor-de-rosa, por sinal, era o prédio em que os pais da Fê viviam quando a filha caçula nasceu. Ficava na avenida Paulista, um dos cartões-postais de São Paulo.
Quase três décadas depois, Fernanda continua morando com os pais. Só que, agora, na zona sudoeste da cidade, perto do shopping Iguatemi, em um apartamento de 570 metros quadrados e quatro salas, repleto de pinturas, tapeçarias e esculturas.
Dos irmãos mais velhos, um é economista e estuda em San Diego (Estados Unidos). O outro toca uma das três fazendas da família na região de Campinas (SP).
"São todas improdutivas", reconhece a Fê, graduada em administração de empresas. "Já investimos muito no ramo. Tentamos criar cavalo, gado de corte e de leite. Nada deu retorno satisfatório. Então, desistimos. Estamos esperando as terras valorizarem para loteá-las."
Havia ainda uma quarta fazenda -justamente a que valorizou. Hoje, é um loteamento com três milhões de metros quadrados, em Itatiba (SP).
Fernanda comanda o negócio. "Trabalho parte da semana em casa e outra parte, num escritório. Mas não ligo para rotinas rígidas. Alguns dias, nem trabalho."
O pai -um empresário da área financeira, que já passou por altos escalões do governo federal- lhe serve de guia. "Sempre o admirei profissionalmente. É um homem de conquistas."
E a mãe, "o máximo". Cuida "da casa, da família, do espírito, e também faz cafuné". "Sabe aquelas pessoas que brilham, que têm uma luz, uma energia boa para transmitir?" A mãe brilha.
Espalha cristais pelas salas, acende incensos, receita florais e guarda um duende no armário. "É meio bruxa." De origem italiana e católica.
Quando não trabalha, Fernanda corre ("odeio academias; prefiro me exercitar correndo"), lê ("de tudo: Paulo Coelho, Lair Ribeiro, "O Mundo de Sofia', livros de meditação"), acompanha o programa da Hebe e o seriado "Seinfeld" ("temos seis pontos de TV por assinatura em casa"), troca e-mails com os amigos e dirige um Tempra ("me relaxa").
O pai e a mãe possuem carros importados -dois Citroen. "Eles adoram a marca. O preço está um pouco salgado, mas ninguém é bobo de não aproveitar uma coisa que dá prazer."
No Brasil, Fernanda nunca andou de ônibus ou metrô. No exterior, sim -"porque lá não tenho carro". Fluente em inglês, viaja pelo menos uma vez por ano para outros países. "Visitei todos os continentes, menos a Ásia e a Oceania."
À noite, só sai com o telefone celular. Medo de assalto. Se o pneu fura, pode pedir socorro logo, sem descer do Tempra.
Mesmo longe dos transportes coletivos, conhece bem o gosto popular. "Amo festa de peão, pagode, axé e sertanejo. Compro os discos, frequento os shows, danço de ficar tonta. Nessas horas, assumo a cara do Brasil -porque o povo brasileiro é assim: está sempre animado, consegue contornar os problemas e nunca perde a vontade de se divertir."
Como a maioria do povo brasileiro, Fernanda elegeu Collor à presidência da República. "Não me arrependo. Ele deu o start. Foi quem começou a abrir o mercado interno para o exterior. Um mérito enorme. O país não pode se fechar. Contamos com muitas riquezas naturais e humanas, mas nos faltam as condições para explorar tanto potencial. Precisamos atrair estrangeiros que tenham a percepção de nossas qualidades e saibam desenvolvê-las."
Em FHC, Fernanda admira "o porte de estadista". "É um presidente que nos representa com dignidade no mundo, coisa de se tirar o chapéu, sobretudo agora que a crise das Bolsas se agravou. Fico sensibilizada quando vejo que Bill Clinton e Tony Blair o respeitam. Ele tem as portas abertas. Volta e meia, arruma um jantarzinho aqui, uma recepção ali."
A Fê diz que, nos últimos três anos, comprou "muito mais importados", embora já os consumisse antes, em viagens internacionais. Reconhece que, "para quase tudo", existe um similar brasileiro. Mas considera que, "no fim das contas", vale a pena optar pela "marca consagrada", que "o mundo inteiro já testou e aprovou".
"A que classe social pertenço? Não consigo responder com exatidão. Estou no topo da pirâmide, claro, só que não no biquinho. Quem está lá é o cara que acorda e pensa: "Vou comprar uma BMW por dia'. Sai de casa e compra. Eu não posso imitá-lo."

O Jardim Leonor chega ao supermercado global
Alexandre também se atrapalha para definir a classe social de que faz parte. "Classe média, né? Mas não sei se média média ou média baixa. Sei é que, se deixar de trabalhar, não sobrevivo."
Paulistano, nasceu na Vila Brasilândia, bairro da zona norte, e hoje mora com os pais e dois irmãos no Jardim Leonor. "Fica em outro município, Cotia, quase uma continuação de São Paulo. Tem aquela cara melancólica da periferia. Casas de blocos ou tijolos aparentes, sem pintura, que os moradores nunca acabam de construir."
A do Alê -"uma casinha própria, térrea, com dois dormitórios"- é das poucas que estão terminadas. "Eu e minha irmã de 16 anos dividimos um quarto." O irmão caçula, de quatro anos, e os pais dormem no outro.
A irmã leciona português em um supletivo de Cotia e cursa turismo na Universidade Anhembi-Morumbi. Os pais trabalham juntos. São comerciantes no ramo de confecção.
Alexandre completou o segundo grau, mas não fez faculdade. Estudou ora em escolas públicas, ora em particulares. "Dependia da grana."
Em 1995, entrou na Universidade Paulista (particular). Tentou virar advogado. Não deu. A grana, de novo, ficou curta.
Trabalha desde os 15 anos. Primeiro, como mecânico. Depois, com artigos de pesca e, finalmente, vendendo roupas. "Rodei os principais shoppings de São Paulo." Eldorado, Ibirapuera e Morumbi. Há seis meses, arrumou o emprego no Iguatemi.
"Os shoppings abriram minha cabeça, me arrancaram do quartinho em que vivia. Descobri a importância de me informar, viajar, cuidar melhor da aparência. Agora, estou dos dois lados -um pé no atraso da periferia e o outro na modernidade."
Ônibus: "Peguei muito. Mas, no ano passado, comprei meu primeiro carro. Um Uno Mille, modelo 96. Pago R$ 490 de prestação por mês. Dureza. Carro não é luxo. É fonte de auto-estima. Penso assim: se consegui comprar um carro, posso continuar sonhando em ter um apartamento, uma empresa, uma casa de praia."
Celular: "Estou na fila da banda B. É como o carro, fonte de auto-estima."
TV por assinatura: "Na semana retrasada, instalamos um ponto lá em casa. Dá para sintonizar uns programinhas de fora -da Europa, dos Estados Unidos."
Viagens internacionais: "Nenhuma. Por enquanto."
Internet: "Acesso no computador de alguns conhecidos. Ainda não tenho o meu."
Importados: "Se a crise deixar, vou continuar comprando cerveja, patê, chá, vinho e massas. Roupas e perfumes, ganho de clientes ou amigos que fiz no shopping."
Inglês: "Não domino, mas percebo o sentido das frases."
Revistas: "Olho a "Vogue' italiana, "The Face' e outras tantas. Não preciso comprar. Entro nas grandes livrarias, pego o que quero, sento lá mesmo e passo a tarde lendo. Depois que as megastores chegaram, pobreza não justifica falta de cultura."
Pagode, axé e sertanejo: "Sem graça. Em geral, as letras são sentimentalóides. Pagode, por exemplo, insiste sempre no mesma tema -a mulher larga o cara, e o cara chora as mágoas num churrasco com a galera. Onde moro, o pessoal todo escuta. Entendo que o rico goste. O contraste atrai. Prefiro tecno."
Violência: "Tenho medo, lógico. Sempre morei em áreas perigosas. Não sou amigo de bandido. Só que, para me proteger, faço política da boa vizinhança. Às vezes, no shopping, alguém elogia os Racionais. Não assino embaixo. Cultuar o rap é cultuar a violência. Desde menino, ouço caras falando as mesmas coisas que os rappers pregam, mas sem fundo musical. Ouço em papos de botequim, nos campos de várzea, na calçada de casa."
Globalização: "É a porta para sair do quartinho. No Jardim Leonor, as pessoas só param diante de uma banca se o jornal estampar manchetes sobre sujeitos da periferia que levaram tiros. Lá ninguém se interessa pelo que acontece no resto da cidade, quanto mais no resto do mundo. Quem se interessa acaba se diferenciando."
Boa aparência: "O que você veste demonstra o quanto você está informado."
Collor: "Taí um que enganou pela aparência. Acontece. Infelizmente, votei nele."
Fernando Henrique: "Mal comparando, é como eu. Vem de um lugar atrasado (o Brasil), mas tem potencial alto e precisa passar confiança para quem vive no coração do dinheiro e da cultura (o Primeiro Mundo)."
Futebol: "Sou corintiano."
A Fê é são-paulina e nunca viu o Alê. Poderiam realmente se casar?
"Com uma ricaça? Difícil. Não iria suportar um sogro milionário me jogando na cara que progredi por causa do dinheiro dele."
"Com um rapaz sem curso superior? Difícil. São universos muito diferentes. Não há aparência que os aproxime de fato. Isoladamente, cada mundo tem o seu valor. Juntar é que pode complicar."



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