São Paulo, quinta-feira, 10 de julho de 2008

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Vinicius, a poesia assobiada

Vinicius tinha o mesmo diálogo com a grande literatura que Tom com a música erudita. Mas também bebia na fonte ainda pura do samba, e venerava igualmente Shakespeare e João da Baiana

JOYCE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Letra de música é uma forma esquisita de poesia. Pegue um texto de Drummond, por exemplo: por mais que se tente, é quase impossível musicar decentemente aquelas palavras de pedra. O letrista de música popular tem de dar nó em pingo d'água para encaixar no tempo exato da melodia a frase que fará sentido e ainda será boa de cantar. Pois é preciso que haja um espaço de conforto para quem canta. É preciso fazer a palavra suingar, ter leveza. Na boca do cantor, a palavra dança. Mas também tem o peso do fundo além da forma, pois no Brasil a música popular é a grande porta-voz da cultura, mais do que qualquer outra expressão de arte.
Nesse sentido, uma letra como a de "Chega de Saudade" é exemplar. Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim, peixinhos a nadar no mar, que é pra acabar com esse negócio de viver longe de mim e pronto, tudo está dito de maneira gostosa e lúdica. Mas o autor dessas palavras é também o poeta das grandes canções de amores demais: por toda a minha vida, a cada despedida vou te amar, desesperadamente. E ainda iria, num futuro próximo, desaguar na mitologia dos afro-sambas. Não é pouca coisa.
Durante muito tempo, a obra de Vinicius de Moraes foi tratada como mobília no universo da MPB. Sua personalidade exuberante ajudou a criar a figura folclórica do "Poetinha", assim mesmo, no diminutivo; a lenda do poeta-que-viveu-como-poeta, obscurecendo a importância da obra. Mas a verdade é que Vinicius de fato inaugurou a letra de música como forma poética estabelecida, e todos os que vieram depois dele - discípulos diretos, como Chico Buarque- tiveram, a partir daí, suas canções merecidamente elevadas ao status de poesia legítima.
Vinicius já era autor reconhecido na cena literária brasileira quando explodiu como letrista. O sucesso popular das primeiras parcerias com Tom Jobim, de luxuosa simplicidade bossanovista, surpreendeu e acendeu uma luz vermelha em seus pares, como Manuel Bandeira, que não se encabulou em lhe dizer ao pé do ouvido: "Esse é o único tipo de sucesso que eu invejo". O sucesso invejável, no caso, era a música assobiada na rua, cantada por aí, sem que o cantante ocasional ligasse o nome à pessoa -o sonho de todo compositor e, pelo visto, também de alguns poetas.
Vinicius não foi o primeiro letrista brasileiro a escrever de maneira coloquial na MPB, como equivocadamente se insiste em dizer. Antes dele, Noel Rosa e todos os moderníssimos compositores dos anos 30 já escreviam na linguagem esperta das ruas. Mas, assim como Tom Jobim na música, Vinicius foi a ponte entre o popular e o erudito, que até então não existia. Tom tinha formação clássica e sua obra musical deve tanto a Debussy, Ravel e Villa-Lobos quanto a Ary Barroso, Caymmi e o jazz. Da mesma forma, seu parceiro Vinicius tinha o mesmo diálogo com a grande literatura que Tom com a música erudita. Mas também bebia na fonte ainda pura do samba, e venerava igualmente Shakespeare e João da Baiana.
Poeta e diplomata, melodista (sim!) e autor de versos definitivos e transformadores no cancioneiro do Brasil - só no Brasil um Vinicius de Moraes seria possível.


JOYCE é cantora e compositora


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