São Paulo, domingo, 10 de agosto de 2008

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ORIGENS

Epitáfio para um bar sem nome

Descobri o lugar logo que cheguei na Vila Mariana, em meados dos anos 80; ao voltar para casa, batia ponto ali, com a desculpa de espairecer

MARÇAL AQUINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

METADE DO povo que freqüentava aquele bar já tinha vivido algum tipo de contrariedade com a lei. E intimações variadas estavam a caminho para a outra metade. Um bar sem nome. E sem portas. Um porto inseguro. Covil.
Descobri o lugar logo que cheguei na Vila Mariana, em meados dos anos 80. Eu trabalhava como revisor até de madrugada e, ao voltar para casa, depois do tenso e intenso embate com as páginas de editoriais do jornal, batia ponto ali, com a desculpa de espairecer.
Me interessava a fauna, na verdade flora -intestinal. (Um tempo muito feliz, embora, na época, como sempre acontece, eu ainda não soubesse disso.
Todos ainda estavam vivos: Vera, Lalucha, Itamar, Dudu, Flavinha. Eu ia quase toda tarde ao cinema. E escrevia, com fúria de autor impúbere e fé de peregrino, o que achava que seria meu primeiro romance. Engano: depois de pronto, cortei o texto com tamanho rigor que o reduzi a uma epígrafe, se tanto.
Memória é tudo aquilo que nos parece que aconteceu.)
O bar não era mais do que um corredor comprido e estreito, que as banquetas coladas ao balcão de fórmica encardida tornavam ainda mais apertado.
Prateleiras com garrafas empoeiradas, imagem de São Jorge no nicho, vidros com salsichas em conserva e ovo colorido, estufa onde boiavam no óleo lingüiças tão suspeitas quanto os clientes. As portas do bar tinham sido removidas; o dono se gabava de nunca ter fechado o recinto, nem na Sexta-Feira Santa -"nem mesmo no dia em que mãinha partiu".
A única porta que sobrou ficava no fim do corredor e conduzia a um inesperado galpão nos fundos do bar, onde ficavam os banheiros imundos, uns bancos de madeira com juras de morte riscadas a estilete e um conjunto de impecáveis mesas de bilhar.
Ali se esbarravam todos os dias os personagens de um imenso compêndio de causas perdidas. Homens que se escondiam do mundo, mulheres desenganadas pela esperança.
No meio, malandros de diversos calibres, boêmios de cabelo acaju, otários desavisados, turistas da meia-noite, poetas trêmulos, ex-presidiários insones. Um ambiente em que até as almas fediam a tabaco. Em algumas noites, a PM baixava de escopeta e encostava esse povo todo na parede para uma revista de rotina. Apreendiam coisa de pouca monta: facas, canivetes, um 38 raspado, umas ampolas, um e outro baseado.
Numa ocasião, passaram para buscar um pernambucano espigado, bom de briga e de sinuca. Pensão alimentícia. De taco na mão, ele pediu licença para terminar a partida antes de ir.
Um tenentinho invocado que comandava a ação considerou por uns segundos antes de concordar, para alívio geral. A maioria ainda se lembrava do episódio em que aquele pernambucano havia se atracado com meia dúzia de gambés, que tentavam prendê-lo pela mesma infração alimentar.
Meu interlocutor favorito era um médico recém-formado, que aparecia depois de dar plantão no pronto-socorro mais hostil da zona sul. Como eu, viera do interior, para onde pretendia voltar depois de concluir a especialização. Contava ocorrências assombrosas do PS, que chocavam até mesmo as almas calejadas do bilhar. Eu era um dos poucos que sabia de seu romance com uma velha mariposa que circulava sempre por ali. Michele, alcoólatra, se dizia filha ilegítima de um famoso jogador de bilhar. Havia afeto entre ela e o meu amigo, mas era "o tipo de amor que não pode dar certo na luz da manhã", no dizer de Caetano. Ele voltou pro interior, casou, criou barriga e filhos. Pelo que sei, ela está enterrada no cemitério da Vila Mariana - tomou formicida num dia primeiro de ano. Li a notícia no jornal outro dia.
O bar já não existe mais.
Ruiu na explosão de um botijão de gás. Em seu lugar, funciona hoje um estacionamento.
Não fecha, dia e noite.
Alguém pode dizer: numa homenagem àquele bar.


MARÇAL AQUINO é jornalista, escritor e roteirista de cinema.


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