São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2008

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ORIGENS

As lajes da Brasilândia

Estes vários andares e níveis de lajes tornam-se terraços belíssimos olhando a cidade; formam um Coliseu gigantesco

Henrique Manreza/Folha Imagem
Paisagem noturna com o pico ao fundo

TATA AMARAL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Escrevo este texto não como uma moradora da Brasilândia, mas como uma visitante que fui -talvez um pouco mais que uma visitante- durante os anos de 2004 a 2007, quando realizei o filme e alguns episódios série "Antônia". O que mais me chamou a atenção foram as lajes. Em constante transformação e construção, as casas dos bairros da periferia -mas não somente estas- vão se sobrepondo ao longo dos anos e da vida econômica de seus moradores.
Cada dinheiro que entra, um pacote de tijolo que se compra.
Os pilares são levantados, as lajes vão sendo assentadas, paredes erguidas, os cômodos se formando. Às vezes, ficam anos de um mesmo jeito: uma escada que dá para o alto, onde uma parede de tijolos é rasgada por um buraco aberto para o mundo, esperando a janela e um dinheirinho para se completar.
Às vezes, é um quarto a mais que se precisa, ou a sala, ou então o filho que casa e, como "quem casa quer casa", os pilares enormes são erguidos desde o chão para agüentar vários andares de justaposição, várias gerações de uma mesma família. O morador que possui maior tino comercial não foge do modelo pilar, lajes, parede: as economias servem para construir casas -ou cômodos- de aluguel, que vão se erguendo ao longo dos anos e das economias, constituindo o que passei a chamar de "complexos".
Esses vários andares e níveis de lajes tornam-se terraços belíssimos olhando a cidade. Em especial, os bairros do Jardim Guarani, Vila Icaraí, Terezinha, todos na encosta da serra da Cantareira, voltados para o centro, formam uma espécie de estádio, um Coliseu gigantesco, onde apenas um dos lados abaixa em direção ao rio, produzindo uma das vistas mais bonitas de São Paulo.
Na Brasilândia, vi muitas mulheres lavando louça de frente para a vista: o rio Tietê ao longe, mais ao longe ainda, pequenos, distantes, o edifício Itália, o Copan e as torres da avenida Paulista. Vi muita criança empinando pipa, pulando perigosamente de uma laje a outra, a cidade ao fundo.
Vi uma tempestade e tive o prazer de filmá-la, distante, negra, perigosa, lá na "cidade" e, perto de mim, o sol banhando as atrizes sobre a laje.
Toda uma vida acontece sobre as lajes do casario: é lá que as crianças passam seus dias, muitas vezes sozinhas quando os pais -na maioria dos casos, as mães- saem para trabalhar.
É lá que as roupas são penduradas, os churrascos e confraternizações de final de semana acontecem, é lá que as conversas particulares se dão, quando estas não cabem dentro das paredes das casas de cômodo.
Filmei a Brasilândia de dia, ao anoitecer, de madrugada, ao amanhecer. Do alto das lajes, via a Brasilândia acordar, os ônibus começarem a circular às quatro e meia da manhã, lá no alto, na avenida, desde cedo lotados. Vi o povo sair para trabalhar, a perua escolar pegando os meninos. Vi o dia passar, os homens sem emprego sentados à soleira dos portões, fumando.
Vi o movimento da hora do almoço, do entardecer, as mulheres chegando com suas sacolas, depois de um dia de trabalho, as crianças voltando da escola, as menores que ficaram sozinhas o dia todo, podendo descer livres para a rua.
Neste "estádio", para mim o lugar mais marcante da Brasilândia, muitas das ruas que correm paralelas contornando o morro são residenciais. Nestas ruas, freqüentadas quase exclusivamente por moradores, caminhão de gás ou de entregas de móveis e materiais, os carros passam respeitosamente devagar e as crianças e velhos caminham sossegados, sem medo.
Mas, outro dia, soube de um atropelamento de criança: ela estava na rua, na SUA rua, indo para a escola com o irmão menor. O carro passou correndo, pegou-a em cheio. Morreu. Desespero. Eu conheci a criança.
Conheci seus pais. Conheci a dor dos seus pais e irmão pequeno, que viu tudo, impotente. Eu me pergunto quando a gente vai ter uma cidade onde os motoristas respeitem o limite de velocidade, onde haja limite de velocidade para ruas residenciais e para a cercania das escolas, onde haja respeito às ruas residenciais, onde os motoristas não tratem as ruas como pistas de corrida, onde os pedestres tenham vez e onde possam andar a pé sem estar em constante risco de atropelamento. Oxalá esse dia chegue em breve!


TATA AMARAL é cineasta


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