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1986
Deus é argentino
Copa mexicana respira o fim da Guerra Fria e consagra a mão de Maradona
HILÁRIO FRANCO JÚNIOR
ESPECIAL PARA A FOLHA
O mundo tinha expectativas
bem distintas nos meses anteriores à Copa de 1986.
Na Europa ocidental, o presente positivo fez a comunidade adotar como hino a "Ode à
Alegria", de Beethoven, e abolir
as fronteiras internas.
Na Europa oriental, um futuro sem Cortina de Ferro e sem
Guerra Fria se tornava viável
com as reformas iniciadas por
Gorbatchov, líder da URSS.
Na Ásia, um futuro promissor batia às portas com "os ventos da liberdade" que ali sopravam, como disse o então presidente dos EUA, Ronald Reagan.
A democracia começava a se
impor em vários países.
Mas, na África, o longo passado colonial e o ainda mais longo
passado de rivalidades étnicas
continuavam a gerar instabilidade política, desigualdade social e penúria material.
Na América Latina, o passado recente de más opções também cobrava a conta. A Colômbia, escolhida para sediar a Copa em 1974, não tinha condições para tanto. O país havia
perdido o controle do grupo
guerrilheiro da Farc e dos cartéis de narcotráfico e, em 1982,
desistiu de sediar a competição.
Pensou-se no Brasil para
substituí-la. Mas, além de condições econômicas pouco favoráveis, o presidente da CBF,
Giulite Coutinho, era adversário político de João Havelange,
que, como presidente da Fifa,
designou, em maio de 1983, o
México para receber o torneio.
Alternativa que também se
revelou problemática. Dez meses antes da Copa, um terremoto na Cidade do México matou
20 mil pessoas e destruiu parte
da infraestrutura do país.
Na solenidade de abertura, o
frágil sistema de comunicações
provocou "o maior desastre da
história da televisão esportiva",
na análise do então secretário-
geral da Fifa, Joseph Blatter.
O saneamento básico também estava comprometido e, ao
longo do torneio, a água pouco
potável provocou diarreia em
várias seleções -a Bélgica precisou importar da Europa
5.000 litros de água mineral.
No Brasil, à morte do messias
político, Tancredo Neves, correspondia certa frustração com
o messias futebolístico, Telê.
Às dificuldades em disciplinar as forças políticas correspondia a dificuldade em disciplinar certos atletas do Brasil.
Às dificuldades em substituir
homens públicos ultrapassados correspondia a dificuldade
em encontrar substitutos para
ídolos com problemas físicos.
À desilusão popular com o
novo governo correspondia a
desilusão com as atuações da
seleção. Havia razões para duvidar da sorte nacional.
No mundo real, o entusiasmo
com o Plano Cruzado não resistiu, um ano depois, a uma inflação acima de 365% ao ano. No
mundo da fantasia, a partida
contra a França, nas quartas de
final, teve duas bolas brasileiras
na trave, três pênaltis perdidos
e a desclassificação da seleção.
Se Deus não foi brasileiro naquela Copa, é porque foi argentino e deu uma mãozinha no célebre primeiro gol de Maradona contra a Inglaterra.
E porque no futebol, e só no
futebol -o drama brasileiro é
não ter entendido isso até hoje- a criatividade irresponsável pode vencer a eficácia perseverante. Tanto que a Argentina venceu a Alemanha na final e conquistou o bi mundial.
HILÁRIO FRANCO JÚNIOR é historiador, professor da USP e autor, entre outros, de "A Dança
dos Deuses - Futebol, Sociedade, Cultura"
(Companhia das Letras, 2007).
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