São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2001

Próximo Texto | Índice

Amazônia

De volta ao mapa do Brasil

MARCELO LEITE
EDITOR DE CIÊNCIA

A cartografia digital está devolvendo ao governo brasileiro a capacidade de planejar um futuro de uso sustentável e menos destruição para a Amazônia. Nas mãos de cientistas e organizações não-governamentais, sistemas de informações geográficas baseados em computador deram origem a um calhamaço de 544 páginas que chega às livrarias quinta-feira e indica o fim da linha para a marcha da ocupação no ritmo Brasil pra frente e floresta abaixo.
O volume se chama "Biodiversidade na Amazônia Brasileira", uma co-edição da Editora Estação Liberdade e do Instituto Socioambiental (ISA) para o trabalho de um consórcio com outras cinco ONGs que, como o ISA, militam tanto na preservação da floresta quanto na produção de dados de qualidade sobre ela.
As seis organizaram um célebre seminário em Macapá, em setembro de 1999. Durante seis dias, duas centenas de especialistas se debruçaram sobre dezenas de cartas temáticas para terminar propondo 385 áreas prioritárias de biodiversidade na Amazônia. É o cerne (veja mapa na pág. 3) da publicação, que leva o subtítulo "Avaliação e Ações Prioritárias para a Conservação, Uso Sustentável e Repartição de Benefícios".
O esforço já começa a produzir efeitos na burocracia estatal. As áreas prioritárias identificadas foram incorporadas ao projeto de ampliação de áreas protegidas que o país negocia com o Fundo Mundial do Meio Ambiente (GEF). A repercussão do diagnóstico de impactos sobre áreas sensíveis causados pelo Programa Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento (Avança Brasil) contribuiu para que o governo federal se decidisse por refazer sua avaliação ambiental global, cujo edital saiu em agosto.

Mapas e mais mapas
Na década de 70, um único mapa -o das províncias minerais do Projeto Radam Brasil- parecia orientar a penetração predatória e desordenada. O modelo resultou na média anual de mais de 17 mil km2 de desmatamento desde o começo dos anos 90, ou quase um Sergipe a cada 12 meses. Agora serão dezenas, centenas de cartas, uma quantidade muito mais condizente com a complexidade da região.
A Amazônia abriga quase 20 milhões de pessoas, dos quais 180 mil índios distribuídos em 170 povos. Ali vivem 10% a 20% das espécies conhecidas do planeta (55 mil de plantas, 2.657 de peixes, 1.677 de aves, 600 de anfíbios e 502 de mamíferos).
O verde homogêneo do mapa camufla 70 tipos diversos de vegetação, agrupados em 23 grandes ecorregiões. Nada a ver com o inferno quente e úmido que a maioria dos brasileiros, sobretudo em Brasília, enxerga na porção norte do território, sinônimo de grotão, atraso, ignorância, preguiça, violência e corrupção.


O modelo desordenado e predatório resultou na média anual de mais de 17 mil quilômetros quadrados de desmatamento, desde o começo dos anos 90


Mapa da confusão
A Amazônia nunca deixou de fazer parte do Brasil. Isso só existe no mapa falso que voltou a circular pela internet, recentemente, com o nome-fantasia de Antiga Reserva Internacional de Floresta Amazônica (Finraf, como aparece na abreviação de um igualmente falso livro didático para estudantes norte-americanos).
Seus 3,6 milhões de km2 de mata (60% da floresta amazônica da América do Sul) permanecem lá, ainda que meio esquecidos. Relegado às últimas prateleiras da burocracia, o território que se revela em "Biodiversidade na Amazônia Brasileira" é o próprio mapa da confusão e do descontrole.
O Brasil tem apenas 1,85% de seu território protegido, parcela considerada baixa diante da média mundial (6%). A situação da Amazônia, assim, parece privilegiada à primeira vista: 171 unidades de conservação, com superfície total de quase 646 mil km2, o equivalente a 13% da Amazônia Legal (que inclui várias áreas não-florestadas e a porção oeste do Estado do Maranhão).
A realidade, porém, é outra. Áreas de proteção federais e estaduais, florestas nacionais e terras militares se sobrepõem umas com as outras, numa capoeira de decretos, portarias e resoluções. Um dos primeiros resultados do seminário de Macapá foi revelar, mapa sobre mapa, que a área total garantida se resume a 8,5%, efetivamente, depois de excluídas as superposições.

Reservas de papel
Proteção apenas do ponto de vista legal, é bom avisar. Porque, na prática, a maior parte dessas terras não é de reservas verdadeiras. Sofrem a pressão constante de invasões e uso incompatível com a preservação do ecossistema, como agricultura, exploração madeireira ilegal e garimpo idem.
Dois exemplos: A Reserva Biológica Tapirapé (PA) tem 97,43% de seus 1.900 km2 -maior que o município de São Paulo- reclamados por títulos de mineração, e o Parque Estadual Candeias (RO), 100% de seus 89,85 km2.
A boa notícia é que a Amazônia tem também 379 terras indígenas. Elas somam mais de 1 milhão de km2, quase 21% da Amazônia Legal. Embora de um ponto de vista legal isso não garanta conservação do ambiente da reserva, pois os índios têm o direito de explorá-la para seu sustento, é isso que acaba ocorrendo na maioria dos casos (leia reportagem sobre os índios gaviões parkatejês na pág. 4). São em geral florestas preservadas de desmatamentos.
É verdade que 17 delas se sobrepõem com 27 unidades federais de conservação (parques e florestas). Como são juridicamente incompatíveis, pois as últimas implicam restrições de uso que conflitam com o direito de usufruto indígena, o seminário chegou a propor a criação de um tipo novo de unidade de conservação, a Reserva Indígena de Recursos Naturais (RIRN). A proposta parou na Comissão de Meio Ambiente da Câmara de Deputados, sob o temor de um conflito de competências entre Ibama e Funai.


A Amazônia abriga quase 20 milhões de pessoas, dos quais 180 mil índios distribuídos em 170 povos; ali vivem 10% a 20% das espécies conhecidas do planeta


Recomendações
O livro "Biodiversidade na Amazônia Brasileira" não se limita a fazer inventários. Seu ponto forte é o uso da ferramenta sistema de informações geográficas para integrar dados relativos às mesmas coordenadas, antes dispersos na literatura científica e por muitos órgãos de governos municipais, estaduais e federal.
O mesmo foi feito com as próprias recomendações do seminário de 1999 em Macapá. Das 385 áreas prioritárias identificadas, verificou-se que 122 (32%) coincidem com unidades de conservação já existentes -nesse caso, trata-se portanto de dar prioridade à sua efetivação. Outras 148 (38%) estão sobrepostas com terras indígenas, e em algum momento será preciso criar algo como as RIRNs.
O problema maior está nas 115 áreas identificadas (30%) que não contam hoje com proteção alguma, no papel ou fora dele. Para sanar essa deficiência, foi proposta a criação de 80 novas unidades de conservação, um acréscimo de 117% sobre a área hoje protegida. Está tudo lá no livro, item por item, mapa por mapa, área por área, com grau de prioridade, localização, municípios abrangidos, tipos de vegetação, ações recomendadas e um generoso etc.
Não falta lugar para a Amazônia no mapa do Brasil, nem diagnóstico com qualidade e resolução espacial. O que está faltando é um projeto para a região, mas tudo indica que ele já começa a se esboçar nas pranchetas digitais. Falta chegar às mesas de madeira nobre de quem realmente decide.


Próximo Texto: Ficha do livro
Índice


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.