São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2001

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A milícia dos gaviões

Lalo de Almeida/Folha Imagem
Índios gaviões, considerados exímios arqueiros, competem entre si com suas armas na Reserva Indígena Mãe Maria (Pará)


Na Reserva Indígena Mãe Maria, perto de Altamira, patrulhas de índios armados garantem a integridade da floresta contra invasões

RICARDO KOTSCHO
ENVIADO A BOM JESUS DO TOCANTINS (PA)

Rostos pintados de preto com carvão e vermelho de urucum, tiaras de palha para os cabelos compridos, pouca conversa. Vai começar mais um dia de plantão na floresta. Os índios gaviões gritam e pulam sobre a carroceria da caminhonete S-10 preta de cabine dupla do "Kaxuwa Amjiptar" (algo como serviço de vigilância na família linguística timbira).
Estão prontos para a guerra. Com armas de fogo, arcos e flechas de pontas envenenadas, botas e farda verde militar, eles agora avançam a pé pelas trilhas na mata de 62 mil hectares.
A milícia comandada pelo índio Matias, 39, é a principal responsável pela sobrevivência da mancha verde que aparece nas fotos de satélite da reserva indígena Mãe Maria, a 30 quilômetros de Marabá (veja mapa).
Ao contrário do que acontece em volta, aqui a mata nativa está preservada, garantindo alimentos para os 473 habitantes da aldeia, às margens da BR-222.
Qual é o milagre? "Isso só foi possível graças a uma liderança forte. O Capitão manda mesmo na área e não admite nem conversar com madeireiros", responde de primeira Eimar Araújo, 48, chefe da administração regional da Funai em Marabá, que zela por mais de 3.000 índios de 11 etnias.
Capitão é como todos chamam o cacique Kokrenhun, 85, cinco filhos vivos, o mais novo com apenas três meses de idade. É ele quem comanda os gaviões com mão de ferro desde os anos 40 do século passado, quando seu povo quase foi dizimado.
O problema é que Capitão não gosta de jornalistas. Deve ter lá suas razões. Concordou em receber a reportagem da Folha apenas depois de muita insistência.
"O pessoal só vem aqui para falar de dinheiro, que índio é tudo cheio de grana e preguiçoso", queixa-se Kuia, 28, filho e provável sucessor de Kokrenhun.
Não houve jeito de Capitão concordar em ser fotografado. Segundo Kuia, o cacique só se deixa fotografar quando está pintado -ritual que demora dois dias.
Na manhã de sábado da semana passada, sem esperar pergunta, Capitão finalmente começou a contar a longa história de resistência dos gaviões parakatejês, desde que eles deixaram a aldeia na cabeceira do rio Capim, a 180 quilômetros de Mãe Maria.
Depois de um longo conflito interno, em que viu sua família reduzida de 100 para apenas 15 pessoas, ele foi procurar ajuda fora da aldeia: "Eu é que procurou branco". No caso, funcionários do antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio, que antecedeu a Funai), que só encontraram uma saída para o conflito: transferir a família do Capitão para outra área.
"No tempo antigo, nossa terra era dez vezes maior", conta o cacique. Para provar, pede ao filho para chamar a pesquisadora Marília Ferreira. Há dois anos ela acompanha a vida na aldeia para preparar a tese de doutorado que vai apresentar no Instituto de Estudos de Linguagem da Unicamp.
Enquanto ela explica o trabalho, Capitão acompanha o jogo de flechas de outros índios no acampamento, área na mata onde os homens passam o dia.
Com aparelho ortodôntico nos dentes, relógio, óculos pendurado no pescoço, fumando um cigarro de filtro atrás do outro, gosta de falar de onde vem a saúde que o faz parecer bem mais jovem.
"É nossa floresta fechada que sustenta a gente. Com floresta aberta, a terra não vale nada. Se planta só capim, é terra morta".
Não demora, começa a disparar contra os "kupen", como os índios se referem ao homem branco. " "Kupen" gosta de chamar nós índios de preguiçosos. O que é preguiçoso? Nós conseguimos viver com roça pequena, não precisa mais. Índio planta amendoim, abóbora, taioba, banana, cacau... Na mata, tem fruta na árvore e muito bicho."


Isso só foi possível graças a uma liderança forte; o cacique Capitão manda mesmo na área e não admite nem conversar com madeireiros


Salvar a madeira
Capitão se empolga com as próprias palavras, aos poucos fica menos desconfiado. Vai dar agora a receita para preservar a floresta. "A madeira que você precisa pode cortar no inverno. Brota de novo. Se queima, morre. Se a madeira é só minha, posso vender. Mas, se é de todos, da comunidade, não posso. Tenho de defender."
Quando os gaviões se instalaram na área atual, no final da década de 60, começou a luta em defesa da floresta, que levou à criação da milícia armada há cerca de dez anos. Ao ver os funcionários do SPI cortando madeira, Capitão tomou as dores da floresta.
"Eu fui lá e falei: para que isso? "Kupen" disse que estava tirando madeira para fazer casa para índio. Casa para índio nada... Mandei parar na marra."
Na mesma época em que os gaviões chegaram a Mãe Maria, estava sendo aberta a primeira das três grandes feridas na selva: um corte de 22 quilômetros por 100 metros de largura da então rodovia PA-70, hoje BR-222, recentemente asfaltada. Depois, viriam as obras do linhão da Eletronorte, que leva a energia de Tucuruí do Pará para o Maranhão, e da ferrovia de Carajás.
Com as indenizações recebidas, os índios construíram 32 casas de alvenaria na aldeia, sistema de esgotos e água encanada, guarita de segurança e outras benfeitorias.
Ao falar do futuro, o cacique aproveita para mandar seus recados aos jovens índios que acompanham a entrevista.
"Por que branco, quando compra terra, não cuida? Não entendo vida de branco, cada vez menos. Não tem pena da floresta. Tira madeira, às vezes nem gado tem. Pega outra terra, derruba tudo, não pensa. Se "kupen" compra 50 alqueires, não quer derrubar só metade para fazer pasto e deixar o resto. Quer logo derrubar tudo."
Apesar de ter chuveiro elétrico em casa, Capitão mantém o hábito de só tomar banho frio às cinco da manhã e se alimentar apenas de produtos tirados da mata.
"Fico aqui lutando com meu pessoal. Tiro por mim, que estou ficando velho: índio não precisa procurar riqueza na rua. Ela está aqui dentro, mas tem de cuidar".
Kuia, o filho que se prepara para sucedê-lo, terminou o segundo grau e vai prestar vestibular para engenharia no próximo ano. Cinco outros estão fazendo cursinho e, no próximo ano, mais dez deverão prestar vestibular. Quatro professores da escola da aldeia, que tem 180 alunos, são índios.
Os gaviões estão agora negociando com a Companhia Vale do Rio Doce um projeto agropecuário nas áreas de capoeira da reserva. Desde 1984, quando da construção da ferrovia que liga Carajás a Itaqui (MA), a empresa financia projetos da comunidade indígena como forma de indenização.
Os gaviões têm um rebanho de 190 cabeças de gado leiteiro que por enquanto produz só para o consumo. Uma área de cinco alqueires de terra está sendo arada para o plantio de arroz, feijão e milho (metade para consumo, metade para venda).

Nós conseguimos viver com roça pequena, não precisa mais, planta amendoim, abóbora, taioba, banana, cacau. Na mata, tem fruta na árvore e muito bicho


O cacique e o futuro
"Penso sempre em quem vai nascer ainda, como meu povo vai viver no futuro", conta o cacique, que não se conforma com a má forma física dos índios barrigudos à sua volta. "Eles estão cada vez estragando mais cedo. Eu me resguardo. Eles parecem mais velhos do que eu...".
Capitão faz um breve silêncio, depois aponta para o repórter: "E você também!"
Todo mundo ri, mas ele logo fica sério novamente ao dizer que para os gaviões a defesa da floresta é uma questão ao mesmo tempo de honra e de sobrevivência, que passa de pai para filho.
Esta fama de gaviões bravos, defensores da mata, ajuda a explicar o êxito da milícia de 18 homens comandada por Matias, que mantém os "kupen" à distância. "Antigamente, gavião era malvado demais, matava mesmo. Quando pegava para valer, torcia pescoço, pegava cabeça e jogava para outro lado."
Agora, se pegam algum branco desavisado catando castanha ou caçando na reserva indígena, dizem que se limitam a entregá-lo à Funai ou à Polícia Federal.
Na eterna batalha entre índios, garimpeiros, sem-terra, pistoleiros, assentados do Incra, posseiros e grileiros, que faz dessa área do Pará um Oriente Médio da selva, os gaviões não só sobrevivem como se multiplicam, preservando a ilha verde.
Erasmo Borges, professor de desenho e cultura brasileira que há dois anos deixou Belém para dar aulas na aldeia, acha que isso só é possível porque eles se preocupam em manter vivas as tradições. "A preservação da natureza só existe por causa da preservação da cultura deles. Uma depende da outra para sobreviver".
Assim, ao acompanhar as andanças da milícia dos gaviões de Mãe Maria, ainda é possível encontrar todo tipo de animais silvestres, até onça preta, e comer frutas que não existem na feira, como muúba (gosto de goiaba), tatajuba (lembra morango) e tuturubá (meio parecido com pera).
É um Brasil cada vez mais difícil de achar no mapa.

Os jornalistas Ricardo Kotscho e Lalo de Almeida viajaram a convite do Projeto Biodiversidade na Amazônia Brasileira


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