São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2008

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ORIGENS

São Paulo, um centro mitológico

No tempo em que o centro era realmente centro?, ah... Nesse tempo eu morei lá. Na av. Rio Branco, entre a rua Aurora e a Vitória

Tuca Vieira/Folha Imagem
A rua Augusta hoje, movimentada durante a madrugada

TOM ZÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os vários "quiçás" daquele bolero são uma boa isca para o anzol SPCentro que estou lançando nas águas do riacho que alagava o Anhangabaú.
Quiçá com a chegada do metrô o centro contrariasse Lévi-Strauss que, vivendo entre nós na década de 30 para fundar a USP, dizia que São Paulo ia da infância à decrepitude sem passar pela vetustez e a dignidade da velhice.
Não foi como Lévi-Strauss queria, mas o metrô fez o centro passar, num salto, da sinfonia clássica de Mozart diretamente para a Pergunta Sem Resposta de Charles Ives, ignorando a escola de Viena e a crise e/ou velhice da tonalidade.
Quiçá da janela do Teatro Municipal se possa efetivamente ver o primeiro arranha-céu da cidade, aquele junto ao gabinete do prefeito, cujo arquiteto, conforme se conta, para provar que aquilo era seguro, resolveu morar na altura absurda e temerária do mais alto dos andares: a cobertura do sexto andar.
Quiçá o centro tenha feito como uma família das antigas civilizações, que na ocasião da morte do seu senhor fazia-se enterrar com ele. Esposa, secretários, funcionários, parentes e aderentes. E todos foram ao formidável enterro dessas últimas quimeras, quando os anjos, Augusto, Haroldo e Décio, jovens estudantes de Direito do Largo de São Francisco, procuraram e descobriram Oswald de Andrade moribundo, pobre, doente e esquecido, morando numa água furtada perto do viaduto Major Quedinho.
Quiçá, pelo menos para minha experiência, o senhor-patrão com quem o centro de São Paulo voluntariamente se enterrou, tenha sido essa contração sincrônica de alguns filhos ilustres, contidos em décadas férteis de explosões culturais que ele desidratou e liofilizou.
Da seguinte maneira: o Centro arranhaceou e construiu um prédio de 22 + 22 + 22 anos-andares, que vai matematicamente da referida e famosa Semana ao nascimento do Tropicalismo, em 66, passando por um presumível 44, quando se delinearam os últimos retoques da miscelânea que é sua arquitetura.
Fui testemunha de um dos momentos finais dessa sincronia. Digo sincronia no sentido que lhe atribui a crítica poética e literária do próprio centro, que também alisou os bancos da escola de São Francisco.
Lembro-me da cena, em agosto de 68, quando, por coincidência do acaso, no ocaso daquele último inverno, encontrei Augusto de Campos, às 6 horas da tarde, na praça da biblioteca, perto do Departamento de Assessoria Jurídica onde ele trabalhava como procurador do Estado, emprego a que dava o nome de "minha prisão agrícola".
Augusto, na sua dignidade delicada e aguda, me chamou a atenção para um dos últimos retoques da pan-estética do Tropicalismo: "Tom Zé, é muito importante que os Mutantes cantem "2.001" naquele tom de música caipira, como está na fita cassete que Rita Lee lhe mandou."
Foi ali também, atrás da biblioteca municipal, numa boate dentro da galeria de lojas que parecia preceder o estilo shopping center, que, ainda completamente desconhecido, fiz meu primeiro show em São Paulo. E, ampliando o centro na direção da Paulista, subindo para o orgulhoso cemitério desta história, no Teatro Record da Consolação, também participei de uma coisa insigne. Cantei no último show de Roberto Carlos, Erasmo e Wanderléia, o inesquecível Jovem Guarda, criado pelo dr. Paulo Machado de Carvalho. Mas estes quiçás todos deveriam ter começado com um "na verdade".
No tempo em que o centro era realmente centro?, ah... Nesse tempo eu morei lá. Na avenida Rio Branco, entre a rua Aurora e a Vitória, num pequeno prédio de seis andares, com o nome comercial de "Hotel Itapuã".
Creio que Augusto Boal, diretor do Teatro de Arena, nos hospedou lá por causa dessa referência baiana. Deve ter dito: "Vai ver que os baianos vão gostar desse Itapuã". Lá ficamos, os rapazes: Tom Zé, Caetano Veloso e Roberto Santana. As moças não: Gal e Betânia ficaram num lugar mais "distinto", os apartamentos Excelsior, na praça da República.
Nesse tempo o centro era, sem alternativa ou dúvida, realmente central. E o frio era frio de verdade, não essas temperaturas amenas do inverno de hoje. Na hora de ir para o Teatro de Arena, que ficava na rua Teodoro Baima, em frente à Igreja da Consolação e ao lado do bar Redondo, que era uma freqüência boêmia e artística -na hora de ir para o teatro, Caetano suspendia a vidraça do quarto e punha a mão do lado de fora para sentir a temperatura. Nossa! Esse gesto, para mim, era o supra-sumo da civilização sulista. É que nos termômetros da nossa infância o filete de mercúrio era baianamente preguiçoso e avesso a saltos e mergulhos olímpicos.


TOM ZÉ é músico, compositor e escritor


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