São Paulo, Quinta-feira, 18 de Março de 1999
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MAL FEITO
Cineastas brasileiros usam recursos privados e estatais, sem definir um modelo de produção
Indústria se organiza mal, mas consegue se desorganizar bem

Folha Imagem
Os atores Colé (esq.) e Wilson grey em cena de 'As Sete Vampiras', filme de Ivan Cardoso realizado com orçamento reduzido e que satiriza os filmes de terror hollywoodianos


IVAN FINOTTI
da Reportagem Local

Se há algo que a indústria do cinema brasileiro sabe fazer é se organizar. Mas tem um talento ainda maior: o de se desorganizar.
Basta ver que, em seus 102 anos de história, o cinema nacional já foi movido por dinheiro de industriais, de banqueiros, do governo, de produtores independentes e de todos eles juntos.
E nenhum desses modelos conseguiu se manter -seja por motivos políticos, seja por econômicos- pelo tempo suficiente para que a indústria passasse a se auto-sustentar.
Hoje, o cinema brasileiro orbita em torno das chamadas leis de incentivo fiscal (Lei do Audiovisual, de 93, e Lei Rouanet, de 91). O mecanismo permite que empresas repassem para produtores até 4% do Imposto de Renda que devem ao Estado.
Para o produtor Luiz Carlos Barreto, "a atividade de produção funciona em torno dessas leis, o que não é confortável nem aconselhável. Para sairmos dessa camisa de força, o ideal não é descartar as leis, mas torná-las apenas um dos mecanismos".
Por essa razão, Barreto busca alternativas, como a gigante norte-americana Columbia, que co-produziu seus dois últimos filmes.
Já Francisco Paulo Aragão, produtor dos filmes de seu irmão, o "trapalhão" Renato Aragão, tem outras críticas e outras alternativas: "Tentei me inteirar do assunto dessas leis, me registrei, mas vi que o volume burocrático iria me atrapalhar na indústria. São seis meses só de burocracia. Prefiro fazer uma cooperativa, com distribuidor e exibidor, e bancar o filme como eu já fazia no passado".
O produtor paulista Anibal Massaini Neto, também presidente do sindicato dos produtores de São Paulo, lembra que o fato de as empresas declararem imposto no fim do ano obriga a indústria cinematográfica a se ater apenas a essa época. "Essa dependência dificulta o estabelecimento da indústria", afirma.

Embrafilme
Os problemas não são exclusivos dos anos 90. Antes da renúncia fiscal, os cineastas batiam ponto na Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes), estatal que dominou o cinema nacional entre 1969 e 1990, quando foi extinta.
Na maior parte do tempo, a Embrafilme funcionou como um misto de produtora e distribuidora. Alguns produtores, defensores da Embrafilme, gostam de citar o ano de 78 como prova do bom funcionamento da empresa.
"Foi o auge. Foram feitos 140 filmes em 78", exagera Massaini Neto. Os números oficiais, na verdade, indicam que a produção foi de exatos 101. Pouco se diz também que, desses, 57 eram pornochanchadas, a maioria produzida bem longe dos cofres estatais.
Esses cofres, aliás, sempre tiveram preferência por quem estivesse dentro do círculo de amizades da elite cinematográfica. Em 74, por exemplo, a Embrafilme excluiu os produtores iniciantes de seu programa de co-produção.
Os exibidores também tinham suas reclamações contra leis protecionistas do cinema brasileiro. O número de dias obrigatórios para exibição de filmes nacionais, por exemplo, subiu progressivamente de 56 dias em 1963 para 140 dias por ano em 1980.
"Essas leis eram nada mais que um reconhecimento aos filmes nacionais, que foram responsáveis, na segunda metade dos anos 70, por levar 50% do público aos cinemas", diz Massaini Neto.
Entretanto, se os produtores e cineastas comemoravam, os exibidores fechavam suas portas. Se em 1969 haviam 3.500 salas no país, o número cairia para 1.553 em 1984.
Na prática, isso significa uma sala fechada a cada três dias durante os 15 primeiros anos de existência da Embrafilme -que não deve ser considerada a única culpada pelos fechamentos, já que a popularização da televisão e a disparada da inflação no país também tiveram sua parcela de responsabilidade.
Se a Boca do Lixo paulistana (região da rua do Triunfo, no centro de São Paulo, que reunia diversas produtoras de cinema) sobreviveu nos anos 70 fazendo suas pornochanchadas -e sexo explícito na década de 80-, alguns produtores esnobavam a Embrafilme diretamente.
O produtor dos Trapalhões Francisco Paulo Aragão afirma ter trabalhado com a Embrafilme apenas por concessão à classe. "A categoria me pediu e nós demos alguns filmes para ela distribuir", diz.
Era mesmo um ótimo negócio para a estatal -que ganhava 15% da bilheteria pela distribuição. Entre 70 e 84, os Trapalhões cravaram nada menos que 13 filmes entre as 20 maiores bilheterias do Brasil.
A maioria dessas 13 produções foram feitas no sistema de cooperativas com exibidores e distribuidores.
Cooperativas e, antes disso, empréstimos. "Nos anos 60, fazíamos operação bancária normal. Pedíamos empréstimo e pagávamos com a bilheteria", lembra Barreto.
Na Boca do Lixo, a agiotagem era mais comum. José Mojica Marins, por exemplo, vendeu os direitos de seus dois primeiros filmes com o personagem Zé do Caixão antes mesmo que as fitas estreassem. Precisava pagar os credores que o haviam financiado.
Antes da década de 60, o cinema nacional viveu em torno de companhias espelhadas na qualidade e técnica de produtoras norte-americanas.
Capitaneados por fazendeiros ou industriais, os principais estúdios foram a Cinédia (Rio, 1930), a Atlântida (Rio, 1941), a Vera Cruz (São Paulo, 1949), a Maristela (São Paulo, 1950) e a Multifilmes (São Paulo, 1952). Todos eles, em maior ou menor grau, acabaram esvaziados por problemas financeiros.
É aí que começa industrialmente a ficção no cinema brasileiro. Até então, segundo o crítico e professor Jean-Claude Bernardet, os documentários e os jornais cinematográficos eram "o sustentáculo da produção e comercialização dos filmes brasileiros".


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