São Paulo, Quinta-feira, 18 de Março de 1999
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A pátria de celulóide vai à luta neste domingo levando na bagagem fantasmas que nos acompanham há um século
Mesmas imagens mostram quem somos

Reprodução
Vera Fischer e Paulo Cesar Pereio, em 'Eu Te Amo' (80), de Arnaldo Jabor


INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Prêmios internacionais são um reconhecimento artístico importante, além de criar belas chances de diálogo entre culturas distantes e modos diferentes de olhar as coisas.
Mas só o Oscar, por ser um fenômeno midiático -é transmitido para 1 bilhão de espectadores-, desnuda completamente a carência da "pátria de celulóide". Estaremos diante da TV, pela terceira vez em quatro anos, na esperança de que desta vez vamos.
A pátria de celulóide é, claro, alusão à "pátria de chuteiras", que é como Nelson Rodrigues chamava a seleção brasileira de futebol.
A aproximação não é fortuita. O futebol era um viés, um pretexto para Nelson Rodrigues enaltecer o brasileiro. Ele não falava tanto de esporte, quanto da agônica descrença do brasileiro em si mesmo, do fóbico temor que nutria pelos branquelos europeus até 1958.
Embora tentadora, a aproximação entre as duas pátrias, a de chuteiras e a de celulóide, é um pouco limitada.
As chuteiras calçam pés reais, representam uma afirmação quase racial do Brasil. O celulóide, ao contrário, não comporta nada além de sombras, de fantasmas. São esses fantasmas, porém, que há mais de um século atravessam nossas mais sombrias dúvidas sobre a viabilidade do Brasil.
A questão que, entra ano sai ano, permanece intacta, enigmática, é: o que vemos, quando vemos um filme nacional (sobretudo quando ele não corresponde a nossas expectativas)?
Não esperamos da literatura, por exemplo, que nos engrandeça diante do mundo. Ver Machado de Assis ou Guimarães Rosa traduzidos aqui e ali, são fatos recebidos com frieza quase glacial.
Com o cinema, ao contrário, somos deliciosamente passionais. Qualquer filme malsucedido vira prova final de nossa incapacidade para a coisa. Isso não é novo. Já nos anos 20 havia quem recomendasse a vinda de cineastas estrangeiros para filmar o Brasil. No fim dos 40, a Vera Cruz trouxe Alberto Cavalcanti de volta ao país na esperança de que nosso único cineasta internacional até então mostrasse o caminho das pedras e montasse uma verdadeira indústria. No fim dos 80, auge da descrença no país, alimentou-se a superstição de que, para fazer filmes "de verdade", deveríamos fazê-los em inglês.
Todas essas tentativas mostraram-se penosamente ilusórias. Filmado por Chick Fowle -o fotógrafo inglês da Vera Cruz- ou por Zé das Couves, o problema maior é que o Brasil continua sendo o Brasil: desdentado, mal vestido, mal alimentado.
É essa imagem torturante que bate em nossos rostos, cada vez que vemos um filme brasileiro.
Por maior que fosse o empenho no sentido de domesticar essa imagem, sempre existiu uma espécie de retorno do reprimido: das chanchadas às pornochanchadas, de Mazzaropi a Zé do Caixão etc. Filmes pobres, muitas vezes desprovidos de talento, não raro meramente oportunistas, sem intenções artísticas.
O mais estranho é que esses filmes, sempre combatidos pela crítica, anos depois de seu lançamento, acabam se tornando referenciais históricos muito fortes. Conhecemos o Rio dos anos 50 graças a Oscarito e Grande Otelo; sabemos mais sobre o caipira paulista graças a Mazzaropi, entendemos muito de nosso comportamento sexual vendo as pornochanchadas.
Passado o impacto do momento, eles já não nos cobrem de vergonha e mostram muito do que fomos ou somos -em parte, precisamente, por não serem produtos "de qualidade".
Nada disso significa que devemos dar as costas ao Oscar ou a Cannes. Uma vitória de "Central do Brasil" no Oscar pode até ter um efeito benéfico para o cinema nacional (como teve a de "O Pagador de Promessas" em Cannes 62). Pode até lavar a alma dos brasileiros, nesse momento de aguda depressão, e nos levar a pensar que não somos, afinal, a escória do mundo.
Mas, mesmo ganhando, enfim, o Oscar, a questão da imagem do Brasil continuará dolorosamente intacta. Porque "Central do Brasil" encantou o país menos pelo que mostrava dele e mais pelo que idealizava e, em certa medida, propunha: a regeneração nacional. Ganhando ou não o Oscar, ficará como o grande filme da era do Real, cujas aspirações captou com muita sensibilidade.
Mas, assim como o Real revelou seus limites, "Central" não é a panacéia universal, nem a salvação da lavoura, nem o encontro de uma fórmula que, enfim, viabilizaria uma indústria de cinema. A indústria supõe certa impessoalidade, um consenso sobre o que seja o país e até um resgate de nossas muitas dívidas passadas -em suma, uma consolidação da cultura que, por muitas razões extracinematográficas, está longe de existir entre nós. Nesse sentido, estamos fadados, para o bem e para o mal, ao artesanato e ao "caso a caso".
Não há uma imagem certa, há apenas uma certa imagem, pode-se dizer, mal traduzindo Jean-Luc Godard. Não existe a imagem final, redentora. Mesmo fora daqui. Temos de conviver com nossas infinitas precariedades, olhá-las de frente, engolir os Trapalhões, reconhecer que eles são o que somos, muito mais do que gostaríamos de admitir.
Podemos ganhar o Oscar, não fará mal. Nem por isso os fantasmas de Canudos, da escravatura, da república mal parida deixarão de nos atormentar. A pátria de celulóide são sombras na tela, uma ilusão, assim como a digna pobreza que mostra o filme de Walter Salles -nossa verdade continua dolorosamente mais bem representada por pivetes assassinos, por exploradores de vendedores ambulantes etc.
É bom ter filmes que concorram ao Oscar. É importante também que exista um outro cinema, aquele que nos parece inepto (à luz do cânone letrado). Este último nos ensina a conviver com essa imagem e a estimá-la -não porque tudo isso seja desejável, mas porque a única chance de eliminá-la é compreendê-la.
E, no fim das contas, o Oscar não pode virar o FMI do cinema brasileiro: aquela porta onde batemos todo ano, na tentativa de resolver, na emergência, os problemas que somos incapazes de encaminhar por conta própria.


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