São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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A Espanha no tempo de Cervantes

O período entre 1570 e 1616 foi um tempo de inquietudes, ansiedades, fracassos, de peste e carestias, de corrupção e perda de influência política do país na arena internacional

ANTONIO FEROS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Ditosa idade e afortunados séculos aqueles a que os antigos puseram o nome de dourados, não porque nesses tempos o ouro, que nesta idade do ferro tanto se estima, se alcançasse sem fadiga alguma, mas sim porque então se ignoravam as palavras teu e meu".
Essas palavras, pronunciadas por D. Quixote no capítulo 11 da primeira parte de suas aventuras (e que ele voltará a repetir no capítulo 20), foram citadas em várias ocasiões para indicar que a obra de Cervantes -assim como a de muitos de seus contemporâneos, escritores como Mateo Alemán, Francisco Quevedo e outros- reproduz as características próprias de uma época de crise: desilusão, desencanto, alienação, sátira ou o desejo de fugir de uma realidade vista como opressiva e deprimente. Foi precisamente em 1600 que Martín González de Cellorigo, um dos mais importantes autores do período, declarou que a Espanha se convertera num lugar onde a virtude era desprezada e o vício, louvado, um lugar habitado por "homens encantados que vivem fora da ordem natural".


NO TEMPO DE CERVANTES OCORREU UMA CRISE DEMOGRÁFICA DE GRANDES PROPORÇÕES: A MORTE DE QUASE UM MILHÃO DE ESPANHÓIS ENTRE 1595 E 1605, EM DECORRÊNCIA DA PESTE; FOI APENAS NO INÍCIO DO SÉCULO 18 QUE A POPULAÇÃO DA PENÍNSULA VOLTOU A ATINGIR OS NÍVEIS DE 1590


Não há dúvida de que a chamada "Espanha de Cervantes", um período compreendido entre 1570 e 1616, foi um tempo de inquietudes, de ansiedades, de fracassos, de peste e carestias, de corrupção, de temores, de crise, de perda de influência política na arena internacional, de exploração e colonização, de violências e crueldades -violências e crueldades perpetradas pelo poder, mas também por grupos e indivíduos, como tantas vezes Cervantes nos recorda em sua obra.
Entretanto, é importante recordar que nem Cervantes nem seus contemporâneos acreditavam que a Espanha de sua época já estivesse definitivamente imersa na decadência. Para muitos dos espanhóis do período, vivia-se sobretudo um momento de transição, na qual a sociedade, em seu conjunto, se via obrigada a analisar o que acontecia e quais deveriam ser as medidas a tomar.
A monarquia nos tempos de Cervantes viveu momentos de glória, mas também sofreu derrotas importantes, que, a partir de 1600, obrigariam a um processo de reflexão coletiva sobre o papel da Espanha na Europa e no mundo. Cervantes participou de uma das vitórias mais simbólicas do poder espanhol, a batalha de Lepanto (1571), na qual o coletivo cristão derrotou o eterno inimigo turco. Lepanto não foi o único momento de glória dos espanhóis, como se demonstraria com a conquista de Portugal e seu império, em 1580. Entretanto, essas vitórias foram acompanhadas por derrotas muito significativas.
O esforço intenso para intervir nos assuntos políticos internos de outras potências européias -uma das chaves do expansionismo promovido por Felipe 2º (1556-1598)- se saldaria com derrotas diante da Inglaterra (a Grande Armada, em 1588), França (ascensão ao trono de Henrique 4º, líder dos huguenotes -protestantes- franceses) e Países Baixos, onde a república holandesa alcançaria a independência da Espanha já no início da década de 1590.
As derrotas militares vieram acompanhadas de crise financeira (a dívida pública da monarquia mais do que dobrou nas últimas décadas do século 16), comercial (é entre o final do século 16 e início do 17 que se observa uma crise profunda na participação da Espanha no comércio internacional) e demográfica.

Trégua de 12 anos
Isso explicaria o fato de Felipe 3º (1598-1621) e sua equipe de governo adotarem uma política menos intervencionista em relação às outras potências européias. O novo governo aceitaria a paz que Felipe 2º tinha assinado em 1598 com Henrique 4º da França, ao mesmo tempo em que restabeleceria relações diplomáticas com a Inglaterra (a Paz de Londres, em 1604) e, em 1609, assinaria uma trégua de 12 anos com a Holanda, com isso reconhecendo a futilidade de uma guerra que empobrecera a Espanha e consolidara a reputação nacional e internacional dos líderes protestantes holandeses. Em contraste com o reinado violento de Felipe 2º ou o de seu neto Felipe 4º (1621-1665), as duas primeiras décadas do século 17 foram um tempo de paz internacional e defesa da colaboração política entre reinos.
Mas se existe algo que se destaca na obra de Cervantes é o fato de ele fazer referência constante à sociedade de sua época, uma das mais diversas da Europa: indivíduos de vários reinos, Estados e naturezas, livres e escravos, estrangeiros, "católicos limpos e velhos" e outros convertidos recentemente ou descendentes de pais e avós judeus ou muçulmanos. Do ponto de vista quantitativo, a situação populacional da Espanha não passava por seus melhores momentos. Embora a população espanhola -mais ou menos 7 milhões de habitantes- fosse relativamente pequena comparada à de outros países europeus, durante o tempo de Cervantes ocorreu uma crise demográfica de grandes proporções: a morte de quase um milhão de espanhóis entre 1595 e 1605, em decorrência da peste. Para se ter uma idéia clara dos efeitos de longo prazo dessa crise demográfica, basta saber que foi apenas no início do século 18 que a população da península voltou a atingir os níveis de 1590.
Deixando de lado a crise demográfica do final do século, a população espanhola, ao que parece, crescia pouco devido a uma combinação de baixa fertilidade e relativamente alta mortalidade infantil. Apesar da imagem que se tem das sociedades do Antigo Regime como sendo feitas de famílias muito numerosas, os dados relativos à península mostram que as famílias tinham, em geral, entre cinco e sete filhos. Destes, a maioria eram descendentes de pais casados, embora tenha sido detectado um alto grau de filhos de mães solteiras, que por vezes chegou a superar os 15%. Contrariamente ao que se acreditava tradicionalmente, a sociedade espanhola era muito mais liberal do que outras em matéria sexual, e assim sabemos que as relações sexuais fora do casamento eram freqüentes e afetavam diversos setores da população. Igualmente difundido era o controle da natalidade, que também alcançava todos os setores sociais.
Como outras sociedades européias da época, a espanhola também apresentava uma divisão social profunda, com uma pequena elite concentrando grande parte das terras, da riqueza e do poder político em suas mãos. Os descendentes dessas elites tinham acesso fácil ao ensino e à universidade -no final do século 16 havia cerca de 20 mil estudantes nas universidades espanholas, aproximadamente 6% da população de menos de 20 anos-, sendo que os descendentes das classes menos favorecidas começavam a trabalhar muito jovens, geralmente aos dez anos, depois de adquirir algumas noções rudimentares de leitura e escrita. Apesar de tudo, o nível de educação da população espanhola era semelhante ao de outros europeus -entre 50% e 60% dos homens sabiam pelo menos ler, sendo que entre as mulheres essa proporção caía para entre 20% e 30%.
Curiosamente, a crise econômica e demográfica coincidiu com uma tendência à "aristocratização" da sociedade (algo comum a todos os países europeus), ou seja, houve um aumento significativo de famílias com títulos de nobreza (entre 100% e 200% entre 1570 e 1620) e daquelas que reivindicavam o status de fidalgos -pequenos nobres com direito à isenção de impostos-, que até 1600 já formavam entre 5% e 10% da população. Como seria de se esperar numa comunidade cujo sinal de identidade mais importante era o catolicismo, o número de clérigos era considerável. Em 1571, por exemplo, apenas em Castela havia cerca de 70 mil eclesiásticos -quase 1,5% da população, cifra que continuou a aumentar nas décadas seguintes, até suscitar críticas furiosas de quem enxergava nisso um obstáculo à modernização econômica e social do país.
A época de Cervantes foi também um tempo de crise econômica, com anos de más colheitas e perda da capacidade produtiva. Os efeitos sociais foram rapidamente reconhecidos na época: aumento no número de mendigos, desempregados, pobres e criminosos. Para os contemporâneos de Cervantes, como atestam suas obras e muitas outras da época, os caminhos da Espanha estavam repletos de condenados a caminho das prisões ou galeras, de corpos de executados expostos para servir de exemplo aos demais e de perigosos bandos de criminosos.
No caso de Dom Quixote, são famosas suas aventuras com os "galeotes" (os condenados a servir nas galeras), no capítulo 22 da primeira parte, e seus encontros com os bandoleiros catalãos no capítulo 60 da segunda parte. Entre 1578 e 1616, por exemplo, 570 pessoas foram condenadas à morte em Sevilha, das quais cerca de 300 foram executadas publicamente, e as estatísticas falam de cerca de 150 mil bandidos e vadios em toda a península.
Essa "picarização" da sociedade, o outro lado da moeda da "aristocratização" acima mencionada, foi objeto de numerosas discussões, com um grupo de escritores -Cristóbal Pérez de Herrera, Francisco de Valles, Lope de Vega, Alonso de Barros, Mateo Alemán e muitos outros- que propunham tratar a vadiagem e o desemprego como crimes sociais, contra muitos outros autores, incluindo Cervantes, que enxergavam a situação como fruto de crises estruturais e propunham soluções baseadas na idéia tradicional da caridade cristã.
A sociedade em que vivia Cervantes também era muito complexa do ponto de vista religioso e étnico. Embora, oficialmente, todos os seus habitantes fossem católicos, a realidade era que existiam minorias importantes -judeus e muçulmanos- que conservavam sua cultura e muitas de suas crenças. A situação de uma dessas minorias, os convertidos de origem judaica, não era tão desesperadora quanto havia sido em décadas anteriores. A temida Inquisição estava mais preocupada em fazer com que os cristãos velhos se comportassem devidamente do que em perseguir uma comunidade convertida cada vez menor. A situação da minoria moura, porém, era muito mais dramática do que em décadas anteriores. Cervantes se refere a ela em vários momentos da segunda parte de "Dom Quixote", através da história e das aventuras do mouro Ricote. O que Cervantes chama de "heróica resolução do grande Felipe Terceiro" -uma resolução aparentemente tomada para "limpar e desembaraçar a Espanha desses frutos venenosos" (capítulo 65 da segunda parte)- implicou na expulsão da península de mais de 300 mil mouros entre 1609 e 1614, um dos acontecimentos mais dramáticos da história moderna da Espanha.
Quando Cervantes morreu, em 1616, a Espanha e os espanhóis ainda estavam vivendo um momento de introspecção coletiva. Muitos dos livros e panfletos publicados nesses últimos anos da vida de Cervantes continuavam a denunciar o que era visto como uma situação de crise e a pedir às autoridades que tomassem medidas radicais que permitissem à Espanha voltar a crescer na Europa e no mundo e que ajudassem a promover uma renovação da sociedade, das finanças, da economia e da justiça.
Embora ainda tenham demorado anos para que tais programas de reformas fossem apresentados, o novo monarca Felipe 4º, nascido em 1605 -o ano da publicação da primeira parte de "Dom Quixote"- ordenou a execução de diversos e complexos programas de reformas, que, talvez de maneira paradoxal, levaram a uma crise ainda maior e ao aprofundamento dos aspectos mais críticos dessa "nossa idade de ferro" que Cervantes definiu através de seu mais famoso fidalgo, Dom Quixote de la Mancha.

Antonio Feros é professor de história na Universidade da Pensilvânia (Filadélfia) e autor de vários livros, entre os quais "Kingship and Favoritism in the Spain of Philip 3º (1598-1621)" e "España en Tiempos de Quijote", co-editado com Juan E. Gelabert (Taurus, 2004).


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