São Paulo, quarta-feira, 18 de junho de 2008

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Na hora de casar, nikkei busca nikkei

TRADIÇÃO Pesquisa Datafolha revela que maioria dos descendentes de japoneses nascidos no Brasil se casa dentro da própria comunidade

MATINAS SUZUKI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

O casamento entre membros da comunidade nikkei e a língua japonesa, duas instâncias fundamentais para a preservação e permanência da sua identidade cultural, ainda são altamente valorizados pelos imigrantes, que começaram a chegar ao país em 18 de junho de 1908, e seus descendentes.
Pesquisa Datafolha na cidade de São Paulo mostra que 2 em cada 3 (66%) japoneses ou descendentes que são de alguma forma casados, que são viúvos ou separados declaram ter parceiros também pertencentes à comunidade nikkei (esta denominação foi adotada oficialmente em 1954). A pesquisa revela uma surpreendente maioria (82%) de membros que dizem entender "mesmo que um pouco" o idioma japonês. Quase a metade (46%) dos japoneses ou descendentes afirma ler e um pouco menos (43%) declara escrever nos difíceis alfabetos japoneses (existem três: os ideogramas kanji, herdados dos chineses, e dois silabários hiragana e katakana).
Os dados do Datafolha são novidade e de grande relevância, uma vez que entre os imigrantes a família e a língua, ainda que com as necessárias variações e adaptações locais, foram elementos essenciais para conservar viva a sensação de pertencimento ao "Yamato-damashi", o espírito japonês.
As mulheres (68%) dizem se casar mais com os membros da própria comunidade do que os homens (63%). Como recai sobre elas (mães e avós) a responsabilidade pela primeira formação dos filhos, as mulheres são vistas como a correia de transmissão dos valores e hábitos para os mais jovens. O fato de a maioria continuar tendo como companheiros preferenciais os membros da própria comunidade talvez ajude na interpretação do grau de permanência da cultura japonesa no Brasil, cem anos após a chegada dos primeiros imigrantes.
A taxa de casamentos intracomunidade decresce de geração para geração: era de 90% entre os nascidos no Japão, caiu para 69% na segunda geração (nisseis) e para 49% entre a terceira (sanseis). Essa tendência serve de apoio estatístico para os estudos que analisaram a trajetória dos imigrantes, após a 2ª Guerra Mundial, na perspectiva de uma integração total aos hábitos e padrões de vida tidos como brasileiros.
No entanto, a pesquisa traz um dado novo: entre os casados, viúvos ou separados mais jovens (25 a 34 anos), mais da metade (55%) declara que o seu parceiro é ou foi da comunidade nikkei. A taxa sobe a 70% entre aqueles que têm entre 35 e 44 anos, um grupo que nasceu entre 1964 e 1973, período em que o fluxo imigratório do Japão para o país era decrescente.
Esses dados indicam um grau de endogamia um pouco maior do que os obtidos pela "Pesquisa da População de Descendentes de Japoneses Residentes no Brasil", divulgada em 1988 pelo Centro de Estudos Nipo-Brasileiro, que mostrava que o percentual de casamento intracomunidade era de 57,3% na cidade de São Paulo e de 61,5% na Grande São Paulo.
A pesquisa do Datafolha, duas décadas depois, levanta a hipótese de que a permanência ou a recriação de valores tradicionais japoneses na cidade de São Paulo talvez seja mais forte do que a imagem de integração, reforçada pelas atuais comemorações do centenário da imigração, deixa transparecer.

Mercado matrimonial
O número de casamentos entre membros da comunidade nikkei é menor na faixa de maior renda (57%) e com maior escolaridade (56%). Essas cifras estão em sintonia com os estudos que mostram que os imigrantes japoneses encontraram na formação universitária uma maneira de ascender e se integrar socialmente, notadamente no pós-Guerra.
A professora Sidinalva Maria Wawzyniak , da Universidade Tuiuti do Paraná, que realizou para seu doutorado uma pesquisa que envolve a constituição das famílias japonesas no Brasil, resgatou um dado interessante. Ela encontrou fontes indicando que os professores universitários não japoneses representavam uma categoria que encontrava inusitado consentimento para casamentos com os descendentes, tal o respeito que os japoneses mais velhos tinham pelos mestres ("sensei") do ensino superior.
A importância que a família tinha no Japão ganhou nova dimensão no caso dos imigrantes em solo brasileiro: mais membros em uma família significava mais mão-de-obra para trabalhar na lavoura ou no pequeno negócio. Como conseqüência, o tamanho das famílias japonesas do Brasil era bem maior do que as do Japão.
A própria imigração só poderia ser realizada por famílias de no mínimo três membros (as famosas "três enxadas"), o que gerou a constituição de "famílias arranjadas", também chamadas de "famílias confusas" -de última hora, juntadas com o propósito de emigrar.
Como os imigrantes das primeiras viagens vieram com o propósito de acumular riqueza para voltar ao Japão, eles procuraram impedir que os filhos se casassem com pessoas de outra etnia. E muitos casamentos eram decididos por acordos entre os pais dos noivos.
Em pesquisa inédita ("Arranjos familiares de japoneses de quatro gerações") à qual a Folha teve acesso, a historiadora Célia Sakurai, autora, entre outros, do livro "Romanceiro da Imigração", diz que "as famílias japonesas se reuniam em colônias e, por conseguinte, o convívio entre as famílias era também muito intenso. A realização de casamentos entre membros das colônias é uma decorrência não apenas da proximidade mas da existência de um mercado matrimonial".
Uma das primeiras estudiosas da vida familiar dos imigrantes japoneses no Brasil, a antropóloga e ex-primeira dama do país Ruth Cardoso afirma em sua tese de doutorado "Estrutura familiar e mobilidade social", de 1972, que "para os japoneses, o processo de cooperação familial vai mais longe, baseado que está em uma hierarquia sustentada por obrigações morais que submergem o indivíduo na coletividade. Ainda agora, grande parte dos nisseis aceita os valores que norteiam a educação japonesa tradicional e procura preservá-los na família".
Sidinalva Wawzyniak acha a expressão "integração" inadequada (ela prefere "estratégias de sobrevivência") e diz, em comunicação feita no seminário "Família e Organização Social na Europa e América", realizado em dezembro do ano passado na Espanha, que "de todos os valores que compuseram as estratégias desenvolvidas pelos japoneses em sua inserção na sociedade brasileira, a recuperação daqueles que reforçavam os laços de família possibilitou-lhes dominar os códigos e as regras que os faziam fortalecidos".
Assim, os casamentos dentro da comunidade nikkei não seriam necessariamente um renegar da integração com os brasileiros, como pode parecer à primeira vista, mas uma maneira de dar musculatura à construção de uma nova identidade, que já não era mais japonesa e nem poderia ser totalmente brasileira.


MATINAS SUZUKI é neto de japoneses. Seus avós vieram da província de Kumamoto


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