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ANÁLISE
A liga Lennon/McCartney
Alquimia dos talentos da banda cria milagre da potência incalculável de uma união
EDUARDO GIANNETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA
A vida de um criador normalmente se divide em duas etapas. Na primeira, o desafio é
desbravar e expandir as fronteiras do seu potencial -é mostrar ao mundo e a si mesmo do
que ele é capaz. Na segunda, trata-se de não
ceder à inevitável fadiga dos anos ou de se
deixar levar pela tendência à acomodação
-mostrar que ele ainda é capaz.
Quando os Beatles se separaram, em 1970,
John Lennon tinha 30 anos e Paul McCartney,
28. Passadas quatro décadas, há pouca margem para dúvida: nada do que fizeram após a
dissolução da banda alcançou a excelência
ou o impacto do que criaram nos oito anos
juntos. Depois de revelarem ao mundo, unidos, tudo de que eram capazes, passaram a
enfrentar o desafio de mostrar ao público, separados, que ainda eram capazes.
Sabemos o que foram as vidas paralelas de
Lennon e McCartney depois dos Beatles. Mas
como teriam sido as suas trajetórias individuais se a banda não tivesse existido -se a
prodigiosa alquimia da liga Lennon/McCartney jamais tivesse tido a chance de se firmar?
Posso imaginá-los, sem dificuldade, no
panteão da música pop internacional:
McCartney na família dos magos da canção
como Elton John e Billie Joel; Lennon na tribo
dos trovadores rebeldes à la Lou Reed e Leonard Cohen. Astros de primeira grandeza,
sem dúvida, mas nada que entrevisse a revolução sonora e cultural dos anos mágicos dos
Beatles: a espantosa sequência "Rubber
Soul" (1965), "Revolver" (1966), "Sgt. Pepper's" (1967) e "White Album" (1968).
O mistério dos Beatles evoca um fenômeno
análogo na química: o advento do novo por
meio da combinação. Quando átomos se ligam na formação de uma molécula, algo original e inusitado emerge: as propriedades de
uma molécula de água, por exemplo, jamais
poderiam ter sido deduzidas ou previstas de
antemão a partir de uma análise das propriedades dos átomos de oxigênio e hidrogênio
que se combinam na sua formação. O todo
supera a soma das partes.
Nenhum dos Beatles isoladamente se revela dotado de um dom absurdo ou de uma genialidade inequívoca como a que se manifesta no virtuosismo elétrico de Jimi Hendrix, no
fraseado poético-melódico de Bob Dylan ou
no arrebatamento performático de Mick Jagger. E, no entanto, da alquimia dos talentos
emerge uma força que supera em vitalidade e
energia transformadora qualquer banda ou
expressão individual de genialidade.
A vida oprime, o som liberta. Os Beatles
transformaram a experiência psicoacústica
da humanidade; eles educaram o ouvido coletivo a uma nova dimensão da sonoridade
na música gravada, assim como a pintura renascentista conquistou a tridimensionalidade na tela plana. O sonho de libertação e florescimento humano de que foram a mais plena expressão não terminou. Ele permanece
vivo em sua música. O milagre não é McCartney nem Lennon. O milagre são os Beatles: a
potência incalculável de uma união.
EDUARDO GIANNETTI, 53, é professor do Insper São Paulo e autor
de "A Ilusão da Alma" (Companhia das Letras)
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