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BIOGRAFIA
Permanência da vasta obra de José Saramago será agora posta à prova
Livres da carga ideológica do autor, romances poderão sofrer avaliação menos apaixonada
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em uma das mais belas cenas escritas por José Saramago, ao final de "O Ano da
Morte de Ricardo Reis", o
protagonista acompanha o
fantasma de Fernando Pessoa para a morte.
Descobre que a capacidade de ler seria a primeira coisa que perderia na nova circunstância, instante derradeiro em que "o mar acabou
e a terra espera".
Mesmo assim, ele carrega
consigo um livro, uma obra
que tanto o perturbara nos
meses anteriores, pois desse
modo deixaria o mundo aliviado de um enigma.
Saramago não levou livro
algum e, infelizmente, não
irá mais se preocupar com
enigmas ou leituras.
Os seus livros, contudo, ficam, e a permanência deles
será agora posta à prova.
Essa questão será solucionada ao longo do tempo, mas
desconfio que a parte mais
importante de sua produção
-aquela que começa com o
"Memorial do Convento" e
vai até "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" ou talvez o
"Ensaio sobre a Cegueira"
(apesar de seu final problemático)-, resistirá e ganhará
novos adeptos à medida que
for diminuindo o impacto da
figura forte e polêmica de seu
autor na compreensão dos
textos.
CARGA IDEOLÓGICA
Livres da excessiva carga
ideológica com que sempre
foram associados e que contaminou boa parte de sua repercussão crítica, esses romances lançados em um período tão curto, de 1982 a
1995, serão avaliados de modos menos "apaixonados" e,
creio, mais positivos.
Será o momento em que ficarão ainda mais claros o elaborado jogo entre memória e
literatura de "O Ano da Morte", a construção sofisticada
de "O Evangelho", o delicado
paralelo entre os casais do
presente e do passado em
"História do Cerco de Lisboa", a arquitetura exagerada e bela do "Memorial do
Convento".
Isso não quer dizer que
não será também reavaliado
o que veio antes, desde o primeiro romance -"Terra do
Pecado", publicado em 1947
e por décadas renegado-,
até o "Manual de Pintura e
Caligrafia", de 1977, e "Levantado do Chão", de 1980,
volume em que pela primeira
vez Saramago adota o uso intensivo da vírgula como sinal
de pontuação fundamental,
uso que se tornou sua marca
registrada.
E o que veio depois, alegorias ambiciosas de alcance
duvidoso -como "Todos os
Nomes", de 1997, e a "A Caverna", de 2000-, exercícios
curiosos -como "O Homem
Duplicado", de 2002, ou "A
Viagem do Elefante", de
2007-, e intervenções bastante forçadas, como "Ensaio
sobre a Lucidez", de 2004, e
"As Intermitências da Morte", de 2005.
Essas serão, porém, tarefas (enigmas) para o futuro.
Hoje, vale a pena lembrar
um comentário do professor
João Alexandre Barbosa, publicado no caderno Mais!, da
Folha, em 1998.
Escreveu ele então que os
romances que José Saramago vinha produzindo lhe
"conferiam a posição de um
dos melhores prosadores de
língua portuguesa" do século que ia terminando.
E acrescentou: "E, para dizer a verdade, o plural só está aí pela existência anterior
de João Guimarães Rosa".
Se o julgamento é exagerado ou não, cabe a cada leitor decidir.
O que importa é que ele
atesta a ordem de grandeza
de uma obra que foi por tantas décadas construída e
que, há poucas horas, chegou ao final.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de
literatura da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades da USP e autor de "O Abismo
Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude
do Romance em O Ano da Morte de Ricardo
Reis, de José Saramago" (ed. Globo).
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