São Paulo, quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO MÚSICA CAIPIRA

Nas arenas de Barretos, a cultura não para jamais

Festa se divide entre os 'urbanejos' e os admiradores da canção de 'raiz'

JOSE HAMILTON RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Barretos ainda tinha ruas de terra no comércio, por onde passavam boiadas a caminho do frigorífico.
Certa vez, um lote de 600 bois vinha do Pantanal para o abate, tocado por comitiva. No meio vinha um boi preto por nome de Soberano. Boi erado, de guampas curvadas e compridas, com fama de criminoso -já tinha matado um peão. Há um estouro da boiada justo quando ela chega na cidade. O povo se recolhe nas casas, as lojas fecham as portas. A boiada lá vem levando tudo nas patas -o Soberano na frente.
Um menino está brincando na rua, distraído. Quando se dá conta do "tropé", desmaia e cai no chão. O Soberano para em sua frente, bufando e rebatendo com o chifre os bois que vinham passando, protegendo o menino. O pai aparece gritando, desesperado, prevê o menino morto, faz ameaças, mas quando vê seu filho vivo e o boi por ele velando, chora de alegria. A seguir compra o tucura e o tira da boiada. "Esse boi salvou meu filho, ninguém mata o Soberano."
Esse é o enredo de "Boi Soberano", moda de viola de Carreirinho, uma das obras-primas da música brasileira. O professor Romildo Santana, de São José do Rio Preto, em sua tese de doutorado, analisa essa composição em profundidade e a considera tão importante que dedicou seu livro "A Moda é Viola" ao Soberano. Talvez seja o único livro do mundo dedicado a um boi de corte.
A Festa do Peão de Barretos tem raiz. Ali foi lugar de boiada estradeira (quando havia) e o mundo do peão boiadeiro sempre envolveu essa tarefa de montar em burro e cavalo bravos, um serviço arriscado mas sempre divertido, e que fazia a alegria dos moradores de fazenda de gado e dos peões de comitivas.
Houve, é certo, uma "americanizada" na festa, com introdução da montaria em touros, coisa que não é muito da nossa história. O máximo de proeza que se fazia com boi era nas "touradas" de circo, onde um peão corajoso se voluntariava para pegar o boi a unha.
Aconteceu o mesmo com a música. No tempo das comitivas de boiada, a música era a caipira tradicional -viola e dupla cantando em terça. Hoje a música caipira está tripartida com uma ala que a cultiva como era, outra que a "modernizou" (duplas de "sertanejos modernos" ou urbanejos) e a terceira que cultiva a viola caipira como instrumento de solo, segmento esse que começou com Tião Carreiro e tem hoje pessoas de grande talento como Ivan Vilela, Roberto Correa, Paulo Freire, Almir Sater, Marcos Giancardini, Pereira da Viola, Paçoca e vários outros.
É assim, a cultura não para, não fica imobilizada no tempo. Tudo anda, na música e na arena.
A Festa do Peão de Barretos normalmente contempla as três alas da música, com as duplas de mais cartaz dos urbanejos, um ou mais de um dos violeiros solistas, e sempre mantendo o território da "música de raiz", no espaço da queima do alho, frequentado por duplas tradicionais, comitivas, oficiais de couro e traia, catireiros, folia de reis, enfim, a "turma dos caipiras".
E isso de montar em boi, além de ser um espetáculo bom de ver -quanta risada!- ainda é um meio de jovens atletas do bridão ganharem um dinheirinho e obter reconhecimento internacional.
Vários deles já foram campeões, lá na terra dos cowboys... Barretos, com coisa nossa (e alguma adaptada...) acaba levando o Brasil para mais longe.

JOSÉ HAMILTON RIBEIRO é repórter do Globo Rural e autor do livro "Música Caipira - as 270 maiores Modas de Todos os Tempos"


Texto Anterior: Saiba mais: Apenas solteiros são admitidos no "Clube do Bolinha"
Próximo Texto: Começa a disputa entre Estados
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.