São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2010

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AMBIÇÃO POLÍTICA DEFINIU O TOM DA DIPLOMACIA

Junta desde 2003, a troica formada pelo presidente Lula, pelo chanceler Celso Amorim e por Marco Aurélio Garcia, assessor do Planalto, mudou a ênfase da política externa brasileira.
Ao foco econômico-comercial predominante desde a redemocratização foi agregado um viés político, definido como uma aposta na multipolaridade e no aumento da projeção do Brasil -com o reforço do pleito à cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.
O caminho para esse objetivo ora seguiu regras estabelecidas -como na decisão de aceitar o comando da missão no Haiti, revendo a posição de não participar de forças de intervenção-, ora passou pelo questionamento do status quo, caso do voto contrário às sanções contra o projeto nuclear do Irã. Como instrumento, houve reforço do Itamaraty, com aumentos de 48% no total de diplomatas (para 1.591), de 127% nos salários e de 39% nas representações no exterior -61 foram abertas, a maioria na África, no Caribe e na Ásia.
Para desagrado de quadros antigos, Amorim alçou uma nova geração ao comando da pasta. Hoje, a maioria dos ocupantes de cargos importantes foi promovida a embaixador por ele, entre os quais seu ex-chefe de gabinete Antonio Patriota, que será seu sucessor no governo de Dilma Rousseff.
Os resultados das mudanças são controvertidos; os críticos falam em dispersão de esforços e em confundir prestígio com resultados. Mas os fatores que a embasaram são claros.
Internamente, eles incluem a chegada ao poder do PT, com histórico de desconfiança em relação aos EUA, e a redução da vulnerabilidade econômica externa, que levava a posições defensivas.
Sandra Rios e Pedro da Motta Veiga, do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento, elencam também a afirmação do agronegócio e da mineração como exportadores competitivos e os interesses das multinacionais brasileiras.
No mundo, houve o fim do consenso liberal dos anos 90, a "negligência" dos EUA em relação à América Latina, devido às guerras no Iraque e no Afeganistão, e a consolidação de novos polos econômicos, China à frente.
Combinados, os dois cenários mudaram a geografia comercial brasileira e resultaram numa proliferação de fóruns, com presença ou de iniciativa do Brasil.
G20 financeiro, G20 comercial, Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) e Unasul (União Sul-Americana de Nações), por exemplo, não existiam em 2002.
Parte desses grupos -a maioria no eixo Sul-Sul- teve mais efeito no reforço do peso do país do que na promoção de posições comuns, dada a heterogeneidade de seus integrantes.

COMÉRCIO
No período, os EUA passaram de segundo destino das exportações nacionais (25,7% do total), logo atrás dos europeus, para o quarto lugar (9,8%) neste ano, em que a Ásia lidera (28,1%), seguida da América Latina.
A relação ambígua com a China -importadora de matérias-primas e competidora das manufaturas nacionais- vem exigindo um planejamento estratégico que deixou de ser feito.
O governo deu prioridade à Rodada Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio), com o objetivo de abrir os mercados ricos aos produtos agrícolas, mas a crise de 2008 inviabilizou um acordo. Fez, com o Mercosul, poucos tratados comerciais -com Israel, Egito, Índia, andinos e África Austral.
Há quem reclame uma reorientação do comércio para os países desenvolvidos, mas a eficácia disso é posta em dúvida pelas dificuldades enfrentadas pelos países que privilegiaram a parceria com os EUA, como o México.
Na América do Sul, maior mercado da indústria nacional, o problema é inverso. A Unasul, voltada à coordenação política, é vista como uma "fuga para a frente" diante das dificuldades de avançar na integração econômica regional.
O Brasil acumula superavits com os vizinhos. Mais citado como líder regional, segundo a pesquisa Latinobarómetro, é cobrado pela redução dessa assimetria.
Mas falta consenso interno sobre o custo da liderança sul-americana, como se viu na reação negativa à posição branda do governo na nacionalização da refinaria da Petrobras na Bolívia e à renegociação do preço pago ao Paraguai pela energia de Itaipu.

CONTRADIÇÕES
Definido pela revista "Foreign Policy" como "the ultimate soft-power power" (a quintessência da potência de poder brando), o Brasil de Lula e Amorim gosta de enfatizar a paz com os vizinhos, o multilateralismo e a qualidade de mediador neutro, destacada na superativa diplomacia presidencial.
Mas a retórica idealista esbarrou várias vezes na realidade do poder. Foi o que ocorreu no caso do Irã, quando China e Rússia aderiram à posição dos EUA e o americano Barack Obama recuou da carta em que incentivava Brasil e Turquia a negociar.
Foi o que se viu também nas derrotas em disputas por cargos relevantes -as direções da OMC, do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e da OMPI (órgão de propriedade intelectual).
O país aderiu a preceitos do "poder duro", como no reforço da dissuasão militar e na defesa do desenvolvimento autônomo da tecnologia nuclear. A política de não condenar países acusados de violar direitos humanos é relacionada à expectativa de apoio em disputas futuras.
Criticada pela contradição com os princípios nacionais, a atuação nessa área causou rivalidade entre o círculo de Dilma Rousseff e o Itamaraty. O primeiro atribui a Amorim leniência com violadores, enquanto diplomatas notam que foi Lula quem demonstrou mais efusividade com dirigentes autoritários.


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