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ESPÍRITO VANGUARDISTA DOMINA PRIMEIRA BIENAL, QUE É INAUGURADA EM 1951 COM CERCA DE 1.800 OBRAS
Ímpeto destruidor
AO DEFENDER
A ARTE
ABSTRATA, O
MAM DE SP
ENCAMPAVA A
BATALHA DE
ROCKEFELLER
FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL
Um charuto a menos
para o tubarão, e
um pão a mais para o bancário." Assim estava escrito nos cartazes
que bancários empunhavam na
chuvosa São Paulo, no dia 20 de
outubro de 1951, durante a abertura da 1ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
"Havia mais policiais lá que artistas plásticos", conta à Folha
Frans Krajcberg, 80. O então jovem artista chegara ao Brasil há
apenas quatro anos e era funcionário do museu. Por isso participou da montagem da exposição,
utilizando um uniforme com dois
grandes "m", das metalúrgicas
Matarazzo, de Francisco Matarazzo Sobrinho, o Ciccillo. Krajcberg
também fora selecionado para
apresentar duas telas na mostra.
Enquanto os bancários protestavam sob chuva, um panorama
da arte moderna internacional
sem precedentes no Brasil tinha
início dentro do renovado salão
Trianon, onde hoje existe o Masp.
Na época, era lá que madame Poças Leitão organizava bailes de
carnaval para a elite paulistana.
As colunas em estilo grego do
edifício chegaram a ser destruídas
para dar lugar às linhas modernistas dos arquitetos Luís Saia e
Eduardo Kneese de Mello.
Esse espírito "destruidor" do
tradicionalismo era parte do conceito de criação do Museu de Arte
Moderna de São Paulo (MAM),
em 1948, por Ciccillo.
A exposição inaugural do museu, com curadoria do francês
Léon Dégand, "Do Figurativismo
ao Abstracionismo", fora um manifesto em favor desta última tendência artística, fortemente estimulada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA).
Não sem oposição, em São Paulo,
de artistas acadêmicos e também
de comunistas, que acreditavam
que a arte devia estar voltada a
questões sociais.
Ao defender a arte abstrata, o
MAM encampava também a batalha de Nelson Rockefeller, o diretor do MoMA, na difusão cultural da Guerra Fria, segundo a crítica Eva Cockcroft. O MoMA organizara, nos anos 50, 19 exposições
de arte norte-americana na América Latina, entre elas São Paulo,
com fundos da CIA (serviço de inteligência dos EUA).
"Os propósitos da CIA em
apoiar atividades culturais e intelectuais não estavam limitados à
espionagem ou em estabelecer
contatos com lideranças estrangeiras. De fato, a CIA buscava influenciar a comunidade intelectual internacional e apresentar
uma forte propaganda dos EUA
como uma sociedade "livre" oposta ao "rígido" bloco comunista",
escreveu Cockroft, na revista
"Artforum", em 74.
O MAM aglutinava um grupo
de intelectuais sintonizados com
as vanguardas artísticas, como
seu diretor, Lourival Gomes Machado. Daí para a organização da
Bienal foi um passo.
Os cinco mil m2 do espaço da 1ª
Bienal foram ocupados por uma
agência de viagens, um posto dos
correios, um bar e cerca de 1.800
obras. Pela primeira vez, o Brasil
expunha telas do norte-americano Jackson Pollock, do alemão
George Grosz, do russo Mark
Rothko e do belga René Magritte,
entre outros, ao lado de Portinari
e Di Cavalcanti.
Apesar do "memorial-protesto"
de 200 artistas acadêmicos da Associação Paulista de Belas Artes,
que consideraram a mostra "falso
credo artístico, anticristão, antilatino e antibrasileiro", e de artistas
filiados ao Partido Comunista, como o arquiteto Vilanova Artigas,
que atacava Ciccillo, classificando-o como um "mecenas mancomunado com o capital estrangeiro", São Paulo aderiu à modernidade da mostra. Em seus primeiros três dias, teve 10 mil visitantes.
Na abertura da Bienal, o poeta
Menotti del Picchia, um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 22, afirmou: "Quem, em
1922, recebeu na ribalta Municipal -como eu, Oswaldo (de Andrade), Guilherme (de Almeida) e
outros- a maior vaia que registraram as batalhas estéticas do
Brasil, a festa elegantíssima e intelectualíssima de hoje, coroando
de aplausos as maravilhosas pesquisas plásticas dos mais destacados vanguardistas de todo o universo, representa uma contraprova de que São Paulo tinha um divinatório e agudo senso de revolução visceral que se operava em
todos os valores humanos".
Na festa de inauguração, a elite
que entrou na Bienal com os sapatos enlameados ouviu o discurso
do ministro da Educação, Simões
Filho, que representava o presidente Getúlio Vargas, confirmando as opiniões de Picchia sobre
São Paulo. "A arte moderna, por
definição audaciosa, fatalmente
teria clima favorável neste panorama em que o surto do progresso
industrial é um frenético estímulo
a todas as ousadias", afirmou o
ministro. Na época, São Paulo tinha 560 mil habitantes, 17 mil carros (hoje são cerca de 10 milhões
de habitantes e 4 milhões de automóveis) e um processo industrial
vertiginoso: era a cidade que mais
crescia no país, já concentrando o
maior número de migrantes.
Sucesso na inauguração, a agilidade de sua montagem refletiu a
rapidez na organização do evento. "Obras do Japão chegaram
quando convidados já estavam no
prédio, montamos tudo em uma
hora", recorda-se Krajcberg.
PROVOCAÇÃO
A realização da 1ª Bienal em 51
teria surgido de uma atitude intempestiva de Ciccillo, segundo
pesquisa de Liliana Mendes, que
em 93 defendeu tese na Unicamp
sobre a Bienal. A idéia original era
organizar o evento em 54, por
ocasião das festividades do aniversário dos 400 anos da cidade.
Entretanto, em meados de 50,
Ciccillo teria ouvido que Pietro
Maria Bardi pretendia organizar
uma mostra internacional. Bardi
era então diretor do Museu de Arte de São Paulo (criado em 1947,
pelo empresário e jornalista Assis
Chateaubriand), rival do MAM.
Ao tomar conhecimento da informação, o empresário virou para
Biaggio Motta, o administrador
do museu e afirmou: "gostaria de
ver em todos os jornais amanhã
que o MAM organiza a 1ª Bienal
de São Paulo em 51". Biaggio telefonou aos jornais e conseguiu pequenas notas.
A primeira iniciativa de Ciccillo
foi viajar aos EUA, para contatar o
MoMA, em busca de apoio.
Há várias versões sobre quem
foi o idealizador da Bienal. Alguns
afirmam que seria o pintor italiano residente no Brasil, Danilo di
Prete, que teria sugerido a organização do evento a Ciccillo. Entretanto, independentemente de
quem seja a idéia, o seguro é que
ele foi de fato o seu viabilizador.
O DESEJO DE CICCILLO ERA HASTEAR MAIS BANDEIRAS NACIONAIS DO QUE A BIENAL DE VENEZA
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Em 1948, Ciccillo foi o comissário da representação de artistas
brasileiros na Bienal de Veneza,
fundada em 1895. Dois anos depois, ele cria um evento nos mesmos moldes, isto é, uma grande
mostra de arte, na qual os artistas
representam seus países, e ainda
um certame, com a distribuição
de prêmios.
O sucesso para a 1ª Bienal teve
colaboração intensa de Yolanda
Penteado, a mulher de Ciccillo. A
arte os vinculava de maneira intensa: Yolanda recebera de presente de casamento do marido o
único auto-retrato feito por Modigliani, que hoje pertence ao Museu de Arte Contemporânea da
USP (que recebeu o acervo de Ciccillo e ainda da Bienal), e vale,
simplesmente, cerca de US$ 30
milhões.
Foi Yolanda quem viajou à Europa em busca da adesões de países. Para tanto, teve o apoio das
embaixadas brasileiras, por indicação de Getúlio Vargas.
EMBAIXATRIZ
Segundo a pesquisa de Mendes,
que não foi publicada mas está
disponível na biblioteca da Fundação Bienal, seu primeiro encontro teria sido na Suíça, onde
esteve com o presidente do Conselho de Berna. Ele mostrou-se
desinteressado em enviar obras a
um país distante, mas teria sido
convencido graças à uma pequena chantagem. Yolanda explicou
que seu marido possuía as maiores indústrias da América do Sul,
precisava comprar teares na Europa, mas tinha dúvidas entre
marcas inglesas e suíças. Resultado: a Suíça compareceu à Bienal
com 55 obras de 11 artistas.
Ela também se encontrou com o
ministro da cultura francês, o escritor André Malraux, que lhe
passou uma lista com os nomes
de artistas e colecionadores. E assim foi conseguindo importantes
apoios. Apesar do esforço, a abertura da Bienal foi adiada em seis
meses, já que, apenas no início de
51, as adesões passaram a ser
substanciais. O desejo de Ciccillo
era hastear mais bandeiras nacionais do que sua inspiração, a Bienal de Veneza.
A abertura, no dia 20 de outubro, marcada para as 16h, aconteceu mesmo às 18h40. Com cerca
de mil pessoas, o local quase teve
que ser interditado, pois estava
muito além da capacidade.
Mas o que se viu era realmente
impressionante para a época. Do
Brasil, além dos selecionados por
meio de inscrição, a organização
convidou oito artistas, apresentados em salas especiais: Bruno
Giorgi, Portinari, Di Cavalcanti,
Lasar Segall, Livio Abramo, Maria
Martins e Oswaldo Goeldi.
Vinte e um países, além do Brasil, participavam da Bienal. Da
França, chegaram peças de Fernand Léger, Picasso e Giacometti.
Dos EUA, Calder, Edward Hopper e Pollock. E não pára por aí: da
Bélgica vieram telas de René Magritte, do Uruguai, Torres-Garcia,
da Itália, Giorgio Morandi e Lucio
Fontana e da Inglaterra, Lucien
Freud e Henry Moore.
Segundo os jornais da época, a
maior gafe aconteceu com o ministro da Justiça da França. Por falha na comunicação entre os organizadores da Bienal, o carro que
deveria buscá-lo não foi enviado,
o ministro ficou esquecido no hotel e voltou irado à Paris.
Após a abertura, o fato que balançou a cidade foi a premiação
dos artistas. O que até hoje marca
a Bienal, o prêmio internacional
de escultura à "Unidade Tripartida", do suíço Max Bill, foi um reforço ao grupo de concretistas
-aglutinados em torno de Waldemar Cordeiro-, que em 52 organizariam o grupo Ruptura. "O
Cordeiro, por falar italiano com o
Ciccillo, tinha influência sobre
ele", relembra Luiz Sacilotto, 77,
um dos artistas do grupo que chegou a participar da Bienal junto
com o próprio Cordeiro, e ainda
Charoux, Geraldo de Barros e
Wladyslaw. Um dos artistas afinados com o movimento, Antonio
Maluf, fora o autor do cartaz da
própria Bienal. O prêmio de escultura nacional foi dado a Victor
Brecheret.
A grande polêmica ocorreu com
o prêmio de pintura nacional dado ao amigo de Ciccillo, Danilo di
Prete. A crítica da época reclamou
que nenhum dos mestres brasileiros, como Segall, Portinari e Di
Cavalcanti, fora contemplado. O
prêmio de pintura internacional
foi dado ao francês Roger Chastel.
Até o dia 23 de dezembro, 60 mil
visitantes passaram pela Bienal,
segundo jornais da época. Sucesso de público, ela começava com
prestígio no cenário internacional. O jornal inglês "The Times"
afirmou: "Veneza e São Paulo são
as duas reais manifestações internacionais de arte moderna".
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