São Paulo, domingo, 20 de maio de 2001

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ESPÍRITO VANGUARDISTA DOMINA PRIMEIRA BIENAL, QUE É INAUGURADA EM 1951 COM CERCA DE 1.800 OBRAS

Ímpeto destruidor

AO DEFENDER A ARTE ABSTRATA, O MAM DE SP ENCAMPAVA A BATALHA DE ROCKEFELLER

FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL

Um charuto a menos para o tubarão, e um pão a mais para o bancário." Assim estava escrito nos cartazes que bancários empunhavam na chuvosa São Paulo, no dia 20 de outubro de 1951, durante a abertura da 1ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo.
"Havia mais policiais lá que artistas plásticos", conta à Folha Frans Krajcberg, 80. O então jovem artista chegara ao Brasil há apenas quatro anos e era funcionário do museu. Por isso participou da montagem da exposição, utilizando um uniforme com dois grandes "m", das metalúrgicas Matarazzo, de Francisco Matarazzo Sobrinho, o Ciccillo. Krajcberg também fora selecionado para apresentar duas telas na mostra.
Enquanto os bancários protestavam sob chuva, um panorama da arte moderna internacional sem precedentes no Brasil tinha início dentro do renovado salão Trianon, onde hoje existe o Masp. Na época, era lá que madame Poças Leitão organizava bailes de carnaval para a elite paulistana.
As colunas em estilo grego do edifício chegaram a ser destruídas para dar lugar às linhas modernistas dos arquitetos Luís Saia e Eduardo Kneese de Mello.
Esse espírito "destruidor" do tradicionalismo era parte do conceito de criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), em 1948, por Ciccillo.
A exposição inaugural do museu, com curadoria do francês Léon Dégand, "Do Figurativismo ao Abstracionismo", fora um manifesto em favor desta última tendência artística, fortemente estimulada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). Não sem oposição, em São Paulo, de artistas acadêmicos e também de comunistas, que acreditavam que a arte devia estar voltada a questões sociais.
Ao defender a arte abstrata, o MAM encampava também a batalha de Nelson Rockefeller, o diretor do MoMA, na difusão cultural da Guerra Fria, segundo a crítica Eva Cockcroft. O MoMA organizara, nos anos 50, 19 exposições de arte norte-americana na América Latina, entre elas São Paulo, com fundos da CIA (serviço de inteligência dos EUA).
"Os propósitos da CIA em apoiar atividades culturais e intelectuais não estavam limitados à espionagem ou em estabelecer contatos com lideranças estrangeiras. De fato, a CIA buscava influenciar a comunidade intelectual internacional e apresentar uma forte propaganda dos EUA como uma sociedade "livre" oposta ao "rígido" bloco comunista", escreveu Cockroft, na revista "Artforum", em 74.
O MAM aglutinava um grupo de intelectuais sintonizados com as vanguardas artísticas, como seu diretor, Lourival Gomes Machado. Daí para a organização da Bienal foi um passo.
Os cinco mil m2 do espaço da 1ª Bienal foram ocupados por uma agência de viagens, um posto dos correios, um bar e cerca de 1.800 obras. Pela primeira vez, o Brasil expunha telas do norte-americano Jackson Pollock, do alemão George Grosz, do russo Mark Rothko e do belga René Magritte, entre outros, ao lado de Portinari e Di Cavalcanti.
Apesar do "memorial-protesto" de 200 artistas acadêmicos da Associação Paulista de Belas Artes, que consideraram a mostra "falso credo artístico, anticristão, antilatino e antibrasileiro", e de artistas filiados ao Partido Comunista, como o arquiteto Vilanova Artigas, que atacava Ciccillo, classificando-o como um "mecenas mancomunado com o capital estrangeiro", São Paulo aderiu à modernidade da mostra. Em seus primeiros três dias, teve 10 mil visitantes.
Na abertura da Bienal, o poeta Menotti del Picchia, um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 22, afirmou: "Quem, em 1922, recebeu na ribalta Municipal -como eu, Oswaldo (de Andrade), Guilherme (de Almeida) e outros- a maior vaia que registraram as batalhas estéticas do Brasil, a festa elegantíssima e intelectualíssima de hoje, coroando de aplausos as maravilhosas pesquisas plásticas dos mais destacados vanguardistas de todo o universo, representa uma contraprova de que São Paulo tinha um divinatório e agudo senso de revolução visceral que se operava em todos os valores humanos".
Na festa de inauguração, a elite que entrou na Bienal com os sapatos enlameados ouviu o discurso do ministro da Educação, Simões Filho, que representava o presidente Getúlio Vargas, confirmando as opiniões de Picchia sobre São Paulo. "A arte moderna, por definição audaciosa, fatalmente teria clima favorável neste panorama em que o surto do progresso industrial é um frenético estímulo a todas as ousadias", afirmou o ministro. Na época, São Paulo tinha 560 mil habitantes, 17 mil carros (hoje são cerca de 10 milhões de habitantes e 4 milhões de automóveis) e um processo industrial vertiginoso: era a cidade que mais crescia no país, já concentrando o maior número de migrantes.
Sucesso na inauguração, a agilidade de sua montagem refletiu a rapidez na organização do evento. "Obras do Japão chegaram quando convidados já estavam no prédio, montamos tudo em uma hora", recorda-se Krajcberg.

PROVOCAÇÃO
A realização da 1ª Bienal em 51 teria surgido de uma atitude intempestiva de Ciccillo, segundo pesquisa de Liliana Mendes, que em 93 defendeu tese na Unicamp sobre a Bienal. A idéia original era organizar o evento em 54, por ocasião das festividades do aniversário dos 400 anos da cidade.
Entretanto, em meados de 50, Ciccillo teria ouvido que Pietro Maria Bardi pretendia organizar uma mostra internacional. Bardi era então diretor do Museu de Arte de São Paulo (criado em 1947, pelo empresário e jornalista Assis Chateaubriand), rival do MAM. Ao tomar conhecimento da informação, o empresário virou para Biaggio Motta, o administrador do museu e afirmou: "gostaria de ver em todos os jornais amanhã que o MAM organiza a 1ª Bienal de São Paulo em 51". Biaggio telefonou aos jornais e conseguiu pequenas notas.
A primeira iniciativa de Ciccillo foi viajar aos EUA, para contatar o MoMA, em busca de apoio.
Há várias versões sobre quem foi o idealizador da Bienal. Alguns afirmam que seria o pintor italiano residente no Brasil, Danilo di Prete, que teria sugerido a organização do evento a Ciccillo. Entretanto, independentemente de quem seja a idéia, o seguro é que ele foi de fato o seu viabilizador.


O DESEJO DE CICCILLO ERA HASTEAR MAIS BANDEIRAS NACIONAIS DO QUE A BIENAL DE VENEZA


Em 1948, Ciccillo foi o comissário da representação de artistas brasileiros na Bienal de Veneza, fundada em 1895. Dois anos depois, ele cria um evento nos mesmos moldes, isto é, uma grande mostra de arte, na qual os artistas representam seus países, e ainda um certame, com a distribuição de prêmios.
O sucesso para a 1ª Bienal teve colaboração intensa de Yolanda Penteado, a mulher de Ciccillo. A arte os vinculava de maneira intensa: Yolanda recebera de presente de casamento do marido o único auto-retrato feito por Modigliani, que hoje pertence ao Museu de Arte Contemporânea da USP (que recebeu o acervo de Ciccillo e ainda da Bienal), e vale, simplesmente, cerca de US$ 30 milhões.
Foi Yolanda quem viajou à Europa em busca da adesões de países. Para tanto, teve o apoio das embaixadas brasileiras, por indicação de Getúlio Vargas.

EMBAIXATRIZ
Segundo a pesquisa de Mendes, que não foi publicada mas está disponível na biblioteca da Fundação Bienal, seu primeiro encontro teria sido na Suíça, onde esteve com o presidente do Conselho de Berna. Ele mostrou-se desinteressado em enviar obras a um país distante, mas teria sido convencido graças à uma pequena chantagem. Yolanda explicou que seu marido possuía as maiores indústrias da América do Sul, precisava comprar teares na Europa, mas tinha dúvidas entre marcas inglesas e suíças. Resultado: a Suíça compareceu à Bienal com 55 obras de 11 artistas.
Ela também se encontrou com o ministro da cultura francês, o escritor André Malraux, que lhe passou uma lista com os nomes de artistas e colecionadores. E assim foi conseguindo importantes apoios. Apesar do esforço, a abertura da Bienal foi adiada em seis meses, já que, apenas no início de 51, as adesões passaram a ser substanciais. O desejo de Ciccillo era hastear mais bandeiras nacionais do que sua inspiração, a Bienal de Veneza.
A abertura, no dia 20 de outubro, marcada para as 16h, aconteceu mesmo às 18h40. Com cerca de mil pessoas, o local quase teve que ser interditado, pois estava muito além da capacidade.
Mas o que se viu era realmente impressionante para a época. Do Brasil, além dos selecionados por meio de inscrição, a organização convidou oito artistas, apresentados em salas especiais: Bruno Giorgi, Portinari, Di Cavalcanti, Lasar Segall, Livio Abramo, Maria Martins e Oswaldo Goeldi.
Vinte e um países, além do Brasil, participavam da Bienal. Da França, chegaram peças de Fernand Léger, Picasso e Giacometti. Dos EUA, Calder, Edward Hopper e Pollock. E não pára por aí: da Bélgica vieram telas de René Magritte, do Uruguai, Torres-Garcia, da Itália, Giorgio Morandi e Lucio Fontana e da Inglaterra, Lucien Freud e Henry Moore.
Segundo os jornais da época, a maior gafe aconteceu com o ministro da Justiça da França. Por falha na comunicação entre os organizadores da Bienal, o carro que deveria buscá-lo não foi enviado, o ministro ficou esquecido no hotel e voltou irado à Paris.
Após a abertura, o fato que balançou a cidade foi a premiação dos artistas. O que até hoje marca a Bienal, o prêmio internacional de escultura à "Unidade Tripartida", do suíço Max Bill, foi um reforço ao grupo de concretistas -aglutinados em torno de Waldemar Cordeiro-, que em 52 organizariam o grupo Ruptura. "O Cordeiro, por falar italiano com o Ciccillo, tinha influência sobre ele", relembra Luiz Sacilotto, 77, um dos artistas do grupo que chegou a participar da Bienal junto com o próprio Cordeiro, e ainda Charoux, Geraldo de Barros e Wladyslaw. Um dos artistas afinados com o movimento, Antonio Maluf, fora o autor do cartaz da própria Bienal. O prêmio de escultura nacional foi dado a Victor Brecheret.
A grande polêmica ocorreu com o prêmio de pintura nacional dado ao amigo de Ciccillo, Danilo di Prete. A crítica da época reclamou que nenhum dos mestres brasileiros, como Segall, Portinari e Di Cavalcanti, fora contemplado. O prêmio de pintura internacional foi dado ao francês Roger Chastel.
Até o dia 23 de dezembro, 60 mil visitantes passaram pela Bienal, segundo jornais da época. Sucesso de público, ela começava com prestígio no cenário internacional. O jornal inglês "The Times" afirmou: "Veneza e São Paulo são as duas reais manifestações internacionais de arte moderna".


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