São Paulo, quinta-feira, 20 de setembro de 2001

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ANÁLISE

Ataque terrorista exige resposta nova

Kissinger endossa "guerra" ao terror decretada por Bush

France Presse
Destroços do WTC vistos através de janela destruída, em foto tirada na última sexta por oficiais da Marinha dos EUA


HENRY KISSINGER

Os ataques terroristas lançados contra Nova York e Washington são, sobretudo, uma chamada para despertar. Nos últimos dez anos as democracias foram progressivamente tornando-se vítimas da ilusão de que as ameaças externas tinham acabado, que os perigos, se é que existiam, eram de origem principalmente psicológica ou social, e que, em certo sentido, a própria história da maneira como era registrada se transformara numa subdivisão da economia ou da psiquiatria.
Embora já tivéssemos vivenciado o terrorismo, na maioria dos casos tinha sido voltado contra instalações americanas no exterior; o impacto tinha sido em grande medida simbólico e ficara longe de ameaçar vidas americanas e a sociedade civil de nosso país. A reação comum tem sido a condenação, uma ou duas incursões retaliatórias e a abertura de processo criminoso contra os perpetradores que pudessem ser encontrados -normalmente, pessoas de escalão mais baixo.
A situação atual exige uma abordagem nova. O presidente George W. Bush declarou sabiamente que os ataques a Nova York e Washington equivaleram a uma declaração de guerra. E, numa guerra, não basta resistir -é essencial vencer. Os ataques a Nova York e Washington representam um desafio fundamental à sociedade civil e à segurança americanas, transcendendo até mesmo o ataque a Pearl Harbor.
A razão disso é que, desta vez, o alvo não foi a capacidade militar dos Estados Unidos, mas a moral e o modo de vida de sua população civil. As baixas foram homens e mulheres inocentes, numa escala que quase certamente supera o número de mortos, em sua maioria militares, em Pearl Harbor.
O desastre nos fez compreender, sobretudo, que algumas das mais cômodas premissas do mundo globalizado, enfatizando os valores da harmonia e da vantagem comparativa, não se aplicam à parcela desse mundo que recorre ao terrorismo.
Esse segmento parece ser motivado por um ódio aos valores ocidentais tão profundo que seus representantes estão dispostos a enfrentar a morte e infligir imenso sofrimento a pessoas inocentes, ameaçando com a destruição de nossas sociedades em nome de algo que é concebido como um choque de civilizações.
Na medida em que esses fatos penetram na consciência do mundo democrático, os terroristas já perderam uma importante batalha. Nos Estados Unidos, vão enfrentar uma população unida e determinada a erradicar o mal do terrorismo, custe o que custar. Na aliança ocidental, puseram fim à discussão sobre se ainda existe uma meta comum no mundo pós-Guerra Fria.
Todas as democracias ocidentais reconheceram que a agressão lançada contra a América, se não for punida, terá sido um prelúdio ao que pode, ainda mais facilmente, ser cometido contra suas próprias sociedades. Uma política de avestruz iria apenas aumentar suas próprias vulnerabilidades.
A inusitada unanimidade da Otan ao definir os ataques a Washington e Nova York como uma ameaça comum e as extraordinárias manifestações de solidariedade popular para com a América demonstram que as experiências compartilhadas de quase duas gerações não foram, afinal, esquecidas, e que se mantêm relevantes.
Mas outros países fora do quadro da Otan também compartilham o interesse comum de não se sujeitar à chantagem de obscuros grupos terroristas que fazem uso de sua capacidade de infligir sofrimento para promover uma estratégia baseada na desumanidade e que não se submetem a nenhuma restrição institucional. O desafio passa a ser o de como traduzir os objetivos comuns numa política operacional.

Revisão abrangente
No que diz respeito aos Estados Unidos, é preciso proceder a uma revisão inicial e abrangente dos procedimentos e da organização dos serviços de inteligência. Até que ponto a crença num período de relativa tranquilidade incentivou uma certa tolerância quanto às expectativas e as possíveis medidas de contenção? Que papel desempenhou a limitação de recursos neste cenário? É preciso criar uma nova organização para dar conta dessas contramedidas?
Em seguida, é necessário desferir golpes retaliatórios contra os recursos que possibilitaram esse ataque. Uma pessoa de fora não pode fazer mais do que uma contribuição mínima a esse esforço, exceto para observar que meias medidas provavelmente farão mais mal do que bem.
O mais importante, porém, é ir além da retaliação, procurar e extirpar o próprio cerne do terrorismo. A guerra que o presidente declarou precisa ser vencida, e não conduzida como uma troca de golpes em que cada ataque é pago na mesma moeda.
É imperativo, portanto, passar além do padrão existente de retaliação e processo criminal e levar o combate até o cerne do problema. As organizações terroristas precisam ser colocadas na defensiva, suas redes precisam ser rompidas, suas fontes de dinheiro, cortadas, e, sobretudo, suas bases nacionais precisam ser submetidas a pressões implacáveis para que lhes neguem guarida segura.
Pois ataques terroristas na escala dos que foram lançados contra Nova York e Washington não podem ser improvisados.
Eles exigem organização, dinheiro, competência técnica, células de apoio no país vítima e, sobretudo, uma base que coordene as atividades. Fugitivos que não param num só lugar não têm condições de organizar ataques tão bem coordenados e concebidos como esses que sofremos.
A América e todos aqueles que apóiam o que já se tornou uma causa universal precisam enxergar como sua tarefa impedir novas carnificinas, obrigando os grupos terroristas a fugir para depois destruí-los.
Certamente não está além do âmbito das possibilidades dos serviços de inteligência das democracias -e, provavelmente, da Rússia- identificar organizações capazes de tais esforços globais. O número de países que as protegem e abrigam é finito.
O desafio imediato consiste em dar a esses países aviso prévio de que, se continuarem a dar refúgio a grupos terroristas, eles serão considerados fora-da-lei; que nós nos sentiremos livres para atacar instalações militares que coloquem em risco a segurança dos povos livres, e que consideramos os países que oferecem guarida especificamente responsáveis pelos ataques desferidos por organizações com as quais eles tenham cooperado.

Medidas concretas
Especificamente: 1. Os Estados Unidos devem exigir a extradição de Osama bin Laden do Afeganistão ou a sua expulsão do território afegão. Quer seu grupo tenha ou não tido envolvimento nos ataques a Nova York e Washington, ele já foi implicado em outros ataques a bens e vidas americanos. E, com frequência, tem encorajado tais ataques. Se o Afeganistão se recusar a fazê-lo, devemos nos sentir à vontade para atacar as instalações de Bin Laden ou quaisquer instalações afegãs capazes de lhe dar apoio. Se ele for expulso, qualquer governo que o receber deve ser informado da determinação dos Estados Unidos (apoiada, espera-se, por seus aliados) em tomar medidas militares contra ele, sua organização e as instalações de apoio a ele no país anfitrião.
2. Deve ser publicada uma lista de grupos terroristas comparáveis. Os governos devem ser avisados de que qualquer país que dê guarida a eles enfrentará um boicote econômico completo e rigidamente aplicado; que seus cidadãos terão negados vistos de entrada aos EUA (e, espera-se, aos países aliados), que seus cidadãos não poderão fazer uso de instituições financeiras americanas e que os países correm o risco de sofrer medidas militares contra os quartéis-generais terroristas e as instalações que lhes dão apoio nesses países.
3. Todos os países devem ser avisados de que o incentivo ao terrorismo pela mídia apoiada pelo Estado será tratado como ato de inimizade.
4. Os aliados dos EUA e outros países importantes devem ser convidados a participar das medidas que estiverem dispostos a apoiar. O objetivo é ir da espera passiva pelo próximo golpe e à ação, com vistas a extirpar a ameaça terrorista. Durante um curto período de tempo, esses grupos poderão reagir aumentando sua violência e seus ataques, mas, confrontados com determinação genuína e uma frente unida, essa violência provavelmente irá diminuir muito rapidamente. De qualquer maneira, é preferível isso a uma atitude passiva que, por trair um sentimento de receio, acaba por incentivar o recurso ao terror.
A América e seus aliados precisam tomar cuidado para não apresentar esta nova política como choque de civilizações entre o Ocidente e o Islã. A batalha é contra uma minoria radical que macula os aspectos humanos manifestados pelo islamismo em seus períodos grandiosos. Ela vai ajudar os regimes árabes moderados, mesmo quando estiverem sujeitos a uma ameaça grande demais para que possam admitir seus temores.
Alguns setores levantaram a questão de se os ataques a Nova York e Washington demonstram a irrelevância da defesa antimísseis em face da gama completa dos perigos possíveis.
É claro que o êxito dos ataques terroristas prova que existem outros meios de atingir os Estados Unidos que não mísseis hostis. Mas eles também demonstram a natureza catastrófica da potencial ameaça dos mísseis.
Mesmo a menor das armas nucleares geraria uma devastação que tornaria quase insignificante a catástrofe dos ataques ao World Trade Center e ao Pentágono. Não se recusa a imunização contra a poliomielite pelo fato de ela não nos proteger contra a gripe. A lição que os ataques nos deixam é que precisamos correlacionar a defesa antimísseis a outros perigos previsíveis.

Política externa
Há, também, o argumento de que os Estados Unidos deveriam modificar sua política externa para anular os ressentimentos que geram o terrorismo. É claro que a política externa americana deve ser objeto de revisão constante. E as boas relações com os países islâmicos devem ser um de seus principais componentes. Mas a moderação é uma virtude apenas para aqueles que sabidamente têm uma alternativa a ela. Não é do interesse nem mesmo dos países islâmicos moderados que a política externa americana -ou ocidental- seja vista como se deixando atemorizar ou cedendo diante da ameaça ou da realidade do terror. Pois as primeiras vítimas de tal conduta seriam os moderados no mundo islâmico e, a longo prazo, todas as populações dos países democráticos.
A América e a democracia enfrentam não apenas um desafio, mas uma oportunidade. Tendo superado as enormes ameaças militares e ideológicas do último meio século, precisamos agora dominar esse perigo mais indireto, mas possivelmente ainda mais insidioso, e transformá-lo numa vitória igualmente decisiva.

Tradução de Clara Allain


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