|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Consequências de uma utopia residencial
Urbanistas já
abandonaram a
cartilha que deu
origem a Brasília;
o carro virou um
vilão, a velha rua
foi revalorizada e
a separação de
usos hoje é tida
como um erro
por FERNANDO SERAPIÃO
O conceito de cidade moderna, do qual Brasília é a mais significante realização, foi desenvolvido na primeira metade do
século 20 em congressos internacionais. A vanguarda do pensamento urbanístico estabeleceu consensos como a setorização de usos (áreas comerciais,
culturais etc.) e a separação de
veículos e pedestres. Contudo,
o cerne da questão era a habitação coletiva, uma das vedetes
de Brasília.
Este conceito se contrapôs à
insalubridade da cidade tradicional, caracterizada por edifícios sem recuos (como nas partes centrais de Paris ou São
Paulo). Lucio Costa respondeu
a questão criando a superquadra (uma célula com 300 metros de lado), com prédios dispostos livremente entre árvores. O plano brasiliense também reflete a questão política
do urbanismo moderno: não
existe lote e o térreo é público.
Para reforçar essa visão, os
edifícios são elevados e qualquer um os pode atravessar. Este térreo vazio é chamado de pilotis -palavra francesa que significa coluna- e só a portaria,
hall de elevadores, escadas etc.
pertencem aos condomínios.
Não há salão de festas ou piscinas. O número de andares é limitado a seis (algumas quadras
possuem três), há apenas um
acesso de veículos visando
trânsito local e uma escola primária pública para atender aos
moradores.
Quatro superquadras juntas
formam uma unidade de vizinhança, que dividem rua de comércio local, igreja, cinema,
clube, escola secundária e escolas parques (com atividades extracurriculares).
Os modernistas focavam na
moradia visando, sobretudo,
solucionar a demanda habitacional do pós-guerra na Europa. Por isso, pesquisaram a industrialização, as dimensões
mínimas das unidades e soluções para novas estruturas familiares. A superquadra torna-se contraditória quando estas
questões são colocadas na mesa: se o urbanismo foi progressista ao estabelecer um térreo
público, a arquitetura foi reacionária ao desenhar apartamentos convencionais.
Entradas de serviços e quartos de empregados, por exemplo, revelam cruel divisão de
classes. Além disso, os prédios
são ocupados somente pela
classe média e não foram industrializados. Para piorar, o
plano ficou incompleto: só uma
das cerca de duas dezenas de
unidade de vizinhança possui
os equipamentos previstos (cinema, igreja, clube etc.); no restante, há apenas comércio e escolas.
A única unidade de vizinhança completa é a mais antiga,
formada pelas Superquadras
107, 108, 307 e 308 Sul. Por isso,
e pelo valor arquitetônico do cinema e da capela desenhados
por Oscar Niemeyer, o conjunto é protegido pelo patrimônio
histórico.
Como funciona este extrato
de utopia após 50 anos? De
uma maneira geral, o conjunto
tem problemas semelhantes às
outras superquadras. Em primeiro lugar, o limite entre o espaço público e o privado não foi
bem assimilado. Grande parte
do comércio, por exemplo, invade área pública. Nem os órgãos governamentais se entendem. Por um lado, o governo do
Distrito Federal aprovou um
projeto de anistia, apelidado de
"lei do puxadinho", que propõe
disciplinar as invasões. Por outro, o governo federal move
ações contra alguns comerciantes para que derrubem as
irregularidades. "Não sei se terei que demolir ou serei anistiada", conta Helvia Gomes, dona
de uma doceria na 108.
Mas é o pilotis o principal
palco deste embate. Grades são
proibidas, mas são usuais as
cercas vivas que definem áreas
privativas imaginárias dos blocos dificultando a circulação de
pedestres no pilotis e nos estacionamentos, sobretudo onde
não há garagem no subsolo, como na 107 e 108, por exemplo.
Existe uma exceção: a 308
mantém o conceito original.
A ativa organização dos moradores representados por um
prefeito, morador eleito pela
comunidade, zela pelo raro
bem comum da quadra: o paisagismo de Roberto Burle Marx.
Em tese, a conservação das
áreas verdes é responsabilidade da Nocavap, órgão público
criado para construir a cidade.
"Temos três jardineiros",
conta Solange Madeira, prefeita da 308 (que administra uma
verba de R$ 10 por apartamento). "Mas não temos segurança
privada pois caracterizaria um
condomínio", argumenta. "Ai
que bom: eles chegaram! Tenho
que ficar em cima", ela suspira,
interrompendo a entrevista ao
ouvir aliviada o barulho de um
veículo da Novacap que aparava a grama entre a superquadra
e a área comercial. "O mato está
alto e facilita que moradores de
rua durmam ali", explica.
Com jardins e prédios bem
conservados, na 308 não ocorre
outro sintoma comum nas demais quadras: a personificação.
Negando o coletivismo e a abstração moderna, reformas descaracterizam os prédios ao procurar, equivocadamente, enobrecer e individualizar os blocos. No pilotis de diversos edifícios da 107 e 108, desenhados
por Niemeyer, sancas de gesso
emolduram as colunas originais, propositadamente simples, e pisos de granilite são
substituídos por granito.
Outra deturpação é a troca de
pastilhas de porcelana das fachadas por modelos cerâmicos
maiores, muitas vezes formando desenhos gráficos que contrastam com concepção original. Também são rotineiras
ações personalistas na área verde, tratada como um quintal
privado. Mas, se as áreas verdes
em geral não são paisagisticamente primorosas, o que importa é a quantidade e o porte
das árvores.
A classe menos favorecida
não mora nas superquadras,
mas as frequenta diariamente,
pois utiliza as escolas. Além do
envelhecimento da população,
a baixa qualidade do ensino público é o principal fator pelo
qual os moradores da superquadras preferem instituições
privadas. Um exemplo? Dos
450 alunos da escola da 107, somente um mora na superquadra (ele é filho de empregada
doméstica que trabalha e mora
em uma unidade).
Algumas escolas estão fechando por falta de usuários,
como a da 315 Sul. O conflito
entre estudantes e moradores é
gerado, principalmente, pela
violência gerada pelo tráfico de
drogas. Segundo conta Cláudio
dos Santos, diretor da escola da
107, seis alunos foram expulsos
este ano pelo envolvimento
com drogas. "É a gangue do boné branco", diz o diretor, que
proibiu o uso do acessório dentro da escola. O vandalismo
também faz parte do cotidiano
das superquadras. Nesta mesma área, alunos picharam parte
do pilotis de um dos blocos. "A
síndica veio aqui chorando,
pois era uma pedra italiana que
não existe mais", relata Santos,
constrangido.
Além do atrito entre classes
sociais, também existe o embate entre usuários do comércio e
moradores. "Cada superquadra
deveria ter comércio local
-açougue, padaria, cabeleireiro etc. Mas aqui temos dois supermercados que atraem clientes de outras áreas que estacionam dentro da nossa quadra",
zanga-se a prefeita Solange.
O dinamismo do comércio
gera outro problema: algumas
quadras possuem comércio especializado ("rua da elétrica",
"rua das farmácias" e "rua da
moda", por exemplo). Os casos
mais graves estão nas superquadras próximas ao Eixo Monumental que são recheadas de
bares e restaurantes. Resultado: o fim da tranquilidade dos
moradores pelo fluxo imprevisto no interior da quadra.
Apesar das virtudes, nenhuma outra cidade terá uma área
residencial como a da capital
brasileira. Suas contradições e
problemas foram fundamentais para a evolução do pensamento urbanístico. Desde os
anos de 1960, os urbanistas não
rezam mais a cartilha que gerou Brasília: a separação de
usos é considerada um erro, a
cidade tradicional e a rua foram
revalorizadas e o carro virou vilão da sociedade.
Mas, para o bem ou para o
mal, a utopia deixou seu legado.
Sua melhor face é a 308 Sul, que
atrai caravanas de estudiosos.
Claro, tudo tem seu preço: um
apartamento de dois quartos
na quadra custa R$ 700 mil, e
um de quatro chega a valer R$ 2
milhões -são os mais valorizados entre as superquadras.
"Olha os meus peixes", apontou
a zelosa prefeita ao observar as
carpas enquanto atravessa o espelho d'água que ela recuperou
recentemente: "Não são lindos?", perguntou orgulhosa.
FERNANDO SERAPIÃO é arquiteto e urbanista. É editor executivo da revista Projeto Design.
Texto Anterior: Uma capital sem museu e biblioteca? Próximo Texto: Frase Índice
|