São Paulo, quarta-feira, 21 de abril de 2010

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MEMÓRIA

Os paulistas desconfiavam

por JOSÉ HAMILTON RIBEIRO
especial para a Folha

Alguns círculos em São Paulo não acreditavam em Brasília. "Uma capital naquele sertão?! O Rio vai aceitar?! Os políticos vão deixar? Quá!..."
Com o começo das obras, porém, Brasília tornou-se assunto obrigatório nos jornais. A missão de um "enviado especial" ao futuro DF envolvia um pouco de aventura, de descoberta, até um certo risco.
Talvez tenha sido por isso que a Folha, então "Folha da Manhã", me mandou, entre 1957 e 1958, pelo menos três vezes a Brasília. (Em 1957, com 21 anos, eu já era repórter, mas ainda estava na faculdade.)
A primeira foi em março de 1957. Hoje parece ingênuo, mas o que a gente viu foi de assombrar. Cidade Livre, um núcleo para onde corriam todos os que chegavam a Brasília sem contato oficial, estava fazendo 18 dias. 18 dias! E já tinha tudo de madeira, praticamente feito à mão: dois hotéis, duas agências de banco, cinco bares, três restaurantes e uma loja (Olha a manchete!) que vendia fogão a gás e colchão de mola!
Mesmo nas obras de empreiteiras, os "candangos" batalhavam como se fosse para eles. Um que estava pondo asfalto na pista do aeroporto me disse que trabalhava "até quando dá, antes que o sol se ponha e depois que a chuva para". (Aquele março foi muito chuvoso.) Um outro, de tarefa na futura avenida dos ministérios, parou um pouco o serviço, me levou a um ponto no terreno, cheio de macega do cerrado e um tronco caído, para dizer: "Aqui é que vamos construir a catedral!".
As notícias eram atordoantes: 800 caminhões chegam a Brasília em algumas horas com material de construção; uma siderúrgica mineira garantiu o fornecimento, no canteiro de obras, de uma tonelada de ferro por hora; já estão no porto do Rio as estruturas metálicas para fazer os ministérios; mais de 20 ônibus estão encalhados na estrada Goiânia/Brasília (um percurso de cerca de 100 km que se fazia em 7/8 horas).
Nesse março de 1957, Brasília tinha 2.500 pessoas (mil contratados pela Novacap e 1.500 na Cidade Livre). A segunda viagem foi em maio de 1957, por ocasião da 1ª missa, assistida já por cerca de 15 mil pessoas. No sermão, o arcebispo de São Paulo, d. Carlos Mota, disse que foi preciso um médico (Juscelino) para consertar o Brasil, que estava com o coração fora do lugar, "muito para baixo". JK afirmou que aquele era o dia da "Ressurreição da Esperança". E um grupo de xavantes, pintados e cheios de enfeites, ficou no fim sem entender. É que as pessoas, na saída, pegavam dos índios (sem pagar) colares, artefatos de pena, arcos e flechas, pensando que fosse brinde...
A terceira viagem -agosto de 1958, Brasília já com 45 mil pessoas- foi num contexto especial. Havia recém saído o primeiro veículo produzido no Brasil, o jipe "Candango", da DKW-Vemag. A Folha propôs-se transformar aquele jipe em carro de reportagem e percorrer com ele 25 mil km de estradas brasileiras, do norte ao sul. Três repórteres participaram da empreitada, cabendo a mim o Centro-Oeste. Nessa época, o Palácio da Alvorada já estava pronto, Brasília, há dois anos do início das obras, já era uma "cidade de fato"; cheia de problemas e embaraços, mas volta não tinha mais. Em entrevista, que ele próprio lembrou tratar-se da primeira entrevista exclusiva de um presidente na nova capital, JK, eufórico (ele não se incomodava com as críticas nem dava atenção aos língua preta), disse que o Brasil tinha atingido o "plano inclinado que o levará à prosperidade e força alguma jamais o deterá".
Deu uma informação: o Brasil tinha, em 1958, 300 mil funcionários federais, 76,7% (ou 230 mil) numa única cidade, o Rio, e só 23,3% para o resto do país. Isso criava uma distorção que governo algum poderia corrigir, a não ser mudando a capital. Grande JK!
(Dia desses, fazendo uma reportagem para a TV, fiquei sabendo que um órgão do Ministério do Meio Ambiente, com tanto a fazer por lá, tinha menos de cinco funcionários no Pantanal. Já na agência de Brasília, mais de mil, até com salão de beleza. Será que está começando tudo de novo?).


JOSÉ HAMILTON RIBEIRO é repórter especial do programa "Globo Rural". Ganhou sete vezes o Prêmio Esso de Jornalismo e é autor de "O Gosto da Guerra" (Objetiva), entre outros livros.


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