São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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50 ANOS DA MORTE DE VARGAS

Em 24 de agosto de 54, suicidou-se o presidente cujas políticas criaram o Brasil moderno; desde os anos 90, os governantes brasileiros tentam desmontar a herança da era getulista

A desconstrução de Getúlio

FREDERICO VASCONCELOS
MARCELO BILLI
DA REPORTAGEM LOCAL

Luiz Inácio Lula da Silva é o 21º presidente a governar o Brasil desde que Getúlio Vargas se suicidou há 50 anos, em meio a uma turbulenta crise política. Getúlio assombrou, de uma forma ou de outra, todos eles. Para muitos, governar significou usar as instituições e modelos que, implementados por Vargas na década de 30, fundaram o Brasil moderno. Após Fernando Collor (1990-1992), parte do trabalho dos governantes é tentar desmontar o que se convencionou chamar de a herança da "era Vargas".
Se levar adiante as reformas sindical e trabalhista que prega, o atual governo deve contribuir mais um pouco para dar ao Brasil uma cara diferente daquela herdada de Getúlio. "Não deixa de ser irônico que as últimas grandes reformas [trabalhista e sindical] possam ser feitas pelo presidente do Partido dos Trabalhadores", nota o historiador Boris Fausto.
Ninguém discorda que o século 20 brasileiro foi marcado pelos modelos e instituições criados por Getúlio. Tampouco há controvérsia a respeito do fato de que, a partir dos 90, aquele modelo começou a desmoronar -como um reflexo das políticas de redução da presença do Estado na economia, por meio de privatização, abertura comercial e ajuste fiscal. Mas na hora de avaliar se a desmontagem da era Vargas é positiva ou não, os brasileiros se dividem.
Qual foi a cara do Brasil entregue por Getúlio a seus sucessores? Ele havia liderado a Revolução de 30, movimento progressista que derrubou as oligarquias paulistas e mineiras que dirigiam o país. Revolução cujos líderes propunham a modernização, em época em que modernidade se confundia com industrialização.
Era um período de crise, um mundo de nações que, terminada a Primeira Guerra, não confiavam no livre comércio. Ao Brasil, a guerra ensinara que não se podia depender tanto da exportação de café e que nem sempre era possível importar o que precisávamos.
Com o novo governo surgiu o nacional-desenvolvimentismo, o modelo do Estado empresário, que financiava a produção e o investimento, protegia as empresas da concorrência externa e priorizava o mercado interno. Este modelo levou o governo a criar empresas que estão hoje entre as maiores companhias brasileiras, como a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) e a Petrobras.
Foi um período, entre 1937 e 1945, com o chamado Estado Novo, de modernização autoritária e paternalista: o governo obrigava os profissionais a se sindicalizarem, controlava os sindicatos, intermediava a relação entre trabalhadores e patrões, concedia novos benefícios sociais, censurava e vigiava os meios de comunicação.
O Brasil necessitava de instituições modernas. Getúlio as criou no seu primeiro período na Presidência (1930-1945): novos ministérios, legislação para regular os contratos de trabalho, sistema previdenciário, instituições para financiar o crescimento industrial, como o BNDES.
Do ponto de vista do desempenho econômico, a receita surtiu efeitos. Durante as décadas de 30 e 40, a economia cresceu em média 5% ao ano, mesmo as taxas recordes das décadas posteriores -nos anos 70 elas atingiram 10% ao ano- foram atingidas graças à estrutura e ao modelo herdados da "era Vargas". Abandonada apenas nos anos 80, a receita transformara o Brasil em uma das dez maiores nações industriais.
Mas os anos 80 foram de estagnação, e os brasileiros começaram a olhar para o passado, buscando as causas da perda de dinamismo. Na Inglaterra, a primeira-ministra Margaret Thatcher havia iniciado, em 1979, um programa de desregulamentação, privatização e redução de impostos sem precedentes. Nos EUA, Ronald Reagan, a partir de 1981, iniciara um programa de redução de impostos.
Os dois exemplos foram adotados pelos economistas liberais e por instituições como o FMI (Fundo Monetário Internacional) como receitas para a volta do crescimento. O Brasil adotaria a receita a partir dos 90.
Se as atuais reformas já dividem os brasileiros, a avaliação da abertura da economia e das mudanças pelas quais passaram as instituições brasileiras desde o governo Collor e de forma mais sistemática durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) causam ainda mais controvérsia, além de debates calorosos.
De um lado, estão os que avaliam que, se o modelo implementado por Getúlio ajudou o Brasil a se desenvolver até meados dos anos 70, ele se tornou uma barreira ao desenvolvimento a partir de então. Defendem, inclusive, que a desmontagem feita até agora foi incompleta e que faz falta uma espécie de "demolição".
"Nosso mercado de trabalho ainda é fortemente regulado. A economia brasileira ainda é relativamente fechada e pouco integrada. O Estado ainda tem uma presença muito forte na economia", avalia o economista Eduardo Giannetti da Fonseca.
Ao contrário de Fausto, que enxerga na década de 90 uma ruptura histórica, com o abandono do modelo nacional-desenvolvimentista inaugurado por Getúlio, Giannetti afirma que o processo de mudança foi lento e gradual. "Não houve ruptura, não tivemos por aqui nada como uma Thatcher. A resistência foi e é grande."
Para Giannetti, se por um lado os anos Vargas foram um período de grande investimento em capital físico -instalações, máquinas, equipamentos-, por outro não houve o mesmo esforço na formação de capital humano -educação, planejamento demográfico, saúde pública. Não foi apenas uma omissão getulista, lembra ele, mas explica grande parte da desigualdade de renda brasileira, uma das piores do mundo.
Do lado oposto, há os que criticam as reformas. O sociólogo Francisco de Oliveira, por exemplo, avalia que FHC foi pretensioso quando, eleito presidente pela primeira vez, pregou em discurso o "fim da era Vargas". Qual o efeito das reformas implementadas desde então? "O que o período neoliberal está fazendo é excluir a classe trabalhadora da política. Parece uma aberração, haja vista que quem está no governo é o Partido dos Trabalhadores. [O governo] está fazendo o contrário do que a era Vargas fez."
Assim, do lado de Giannetti estão os que avaliam que, para se modernizar e tornar-se mais competitivo e justo, o Brasil deve se livrar de vez da herança da "era Vargas". Do lado oposto, estão os que interpretam as reformas como o abandono de um projeto nacional caro ao país. Abandono que resultará em exclusão e desigualdade cada vez maiores.
"FHC com muita consciência disse que iria virar a página do getulismo na história brasileira. A herança que ele deixa é a financeirização da economia. O capital especulativo chegou a enfraquecer a força do Estado e a identidade nacional", diz Emir Sader, professor de sociologia da USP.
Críticos ou não da "modernização" dos anos 90, todos concordam que Getúlio foi personagem central da história brasileira e que, depois dele, e provavelmente por mais algum tempo, os governantes brasileiros terão que lidar ainda com a herança getulista.
Herança que não se reduz aos aspectos econômicos. "Vargas nos deixou também como legado muito forte certa debilidade democrática", avalia a historiadora Maria Tucci Carneiro, da USP.
A democracia brasileira ainda engatinha e, diz ela, não são raros os momentos em que os governos brasileiros parecem vacilar. "Persiste ainda uma vontade populista e demagógica, uma defesa do estado interventor inclusive no plano das idéias e uma certa dificuldade em lidar com as críticas", argumenta Tucci Carneiro.


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