São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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Brasil brasileiro nasce com Vargas

Governo de Getúlio adotou intervenção do Estado na cultura para disseminar uma imagem moderna do país

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

O Brasil do samba, da mulata, do Carnaval, da feijoada, do futebol, do malandro, da democracia racial, da natureza desconcertante, do barroco mineiro e da arquitetura moderna foi uma invenção da era Vargas.
Foi no governo de Getúlio Vargas que se moldou, nos anos 30, a imagem do Brasil moderno. A matéria-prima usada foi o turbilhão de idéias e projetos que circulavam havia duas décadas, muitas das quais aparentemente inconciliáveis, mas que tinham um traço em comum: eram chamadas de "modernas".
O próprio Getúlio chegou a apontar paralelos entre a Revolução de 1930 e o movimento modernista de 1922. O parentesco mais óbvio é que ambos queriam salvar o Brasil: os modernistas, da cultura bacharelesca, e Vargas, das "elites atrasadas".
A convergência de interesses era ampla o suficiente para Getúlio ter tido sob suas ordens um panteão modernista: Carlos Drummond, Mário de Andrade, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Villa-Lobos e Portinari (até Graciliano Ramos, preso em 1936 pela polícia getulista, torna-se inspetor federal de ensino três anos depois).
Para salvar o Brasil do atraso, Getúlio precisava criar uma nova mitologia para o país, "um novo modelo de autenticidade", como define o antropólogo Hermano Vianna. Os modernistas já haviam esboçado esse novo mundo com a reverência que dedicavam à cultura popular, ao barroco e ao nativismo. Talvez não seja coincidência o fato de Getúlio ter sido o primeiro presidente a visitar uma área indígena -em 1940, entrou numa aldeia dos carajás.
Com a chegada de Vargas ao poder, parte do ideário modernista foi convertido em política de governo. O Estado fez uma intervenção na cultura numa escala sem precedentes no país ao passar a ter uma atuação na música, no cinema, no teatro, no livro e na educação, segundo Sérgio Miceli, professor de sociologia na USP e autor de "Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945)", trabalho de 1979 que se tornou referência sobre o tema. "O Estado transforma a cultura numa área de atuação política. Essa característica perdura até hoje", afirma.
A transformação do samba carioca em música nacional por um presidente gaúcho, processo dissecado por Hermano Vianna em "O Mistério do Samba", talvez ilustre a complexidade da intervenção. A grande questão para os grupos que apoiavam Getúlio, como escreve Viana, era "encontrar determinados traços culturais que pudessem ser aceitos, pelo maior número de "patriotas", como aquilo que existe de mais "brasileiro" em seu país".
O samba envolvia grupos tão distintos quanto negros e milionários, cariocas e baianos, intelectuais (Afonso Arinos) e músicos de vanguarda (Darius Milhaud).
Não faltam exemplos dessa aprovação ao samba. Afonso Arinos, presidente da Academia Brasileira de Letras, freqüentava nos anos 10 a república de Pixinguinha e Donga; os Oito Batutas (grupo de Pixinguinha) já haviam tocado para os reis da Bélgica.
Getúlio não se limitou a entronizar o samba como ritmo nacional. Um decreto de 1937 obrigava as escolas a adotar enredos cívicos ou históricos.
A maior parte desse processo antecedeu Getúlio, mas foi no seu governo que as rádios e as gravadoras transformaram o samba em fenômeno de massa.
Ele percebeu logo o papel que o rádio poderia ter em sua política de criar símbolos nacionais. Em 1932, uma lei previa o "Programa Nacional", que se materializaria sete anos depois com "A Hora do Brasil". Em 1937, quando Getúlio cria o Estado Novo, usa o rádio para fazer o primeiro pronunciamento em rede no país. Em 1940, o governo encampa a Rádio Nacional por uma razão estratégica: tinha transmissores mais potentes. Na Nacional, o governo passa a usar a seu favor o estrelato que nascera no rádio por meio de cantores como Linda Batista, Francisco Alves e Carmen Miranda.
As faces desse mundo do espetáculo podiam ser vistas no teatro de revista, nos filmes da Cinédia e nas nascentes revistas.
A produção oficial de cinema mostra que não havia uma só receita do Estado. O Instituto Nacional de Cinema Educativo, criado em 1937, privilegiava a educação; o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) fazia o culto à personalidade de Getúlio.
A imagem da nação nos filmes de Humberto Mauro seguem o ideário do século 19, segundo a historiadora Sheila Schvarzman, professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas): é grandiloqüente, parnasiana. "O Brasil é feito de natureza e tudo é excepcional: a vitória-regia, o peixe elétrico. E há sempre o endosso da ciência".
A escolha de intelectuais do modernismo para ocupar cargos no governo Vargas, de acordo com Miceli, deve-se à aproximação do movimento com a arte popular. Ele gosta de usar uma comparação para frisar a importância que intelectuais como Rodrigo Melo Franco de Andrade e Lúcio Costa tiveram: além do Brasil, só o México na América Latina preservou o seu patrimônio histórico.
A ação do Estado na arquitetura ilustra um pouco a estratégia de Getúlio de cortejar a direita e a esquerda do espectro político. "É um engano achar que o governo Vargas só deu força para o modernismo. Ele ergueu também prédios que têm algo da arquitetura fascista da época", diz Silvana Rubino, professora de história da arquitetura da Unicamp.
Getúlio Vargas bancou o primeiro arranha-céu modernista do mundo -o Ministério da Educação no Rio-, mas fez também a sede neoclássica do Ministério da Fazenda.


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