São Paulo, sexta-feira, 23 de janeiro de 2004

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IDÉIAS DA USP

Instituição foi importante na profissionalização de ensino e pesquisa em humanidades

Para intelectuais, humanas resistiram a pressões políticas


A USP FOI O QUE PRESCREVEU A ELITE PAULISTA CONTRA A "DEGENERAÇÃO" DAS OLIGARQUIAS NACIONAIS


VINICIUS MOTA
DA REPORTAGEM LOCAL

Nascidas num projeto de reconquista do poder nacional pela oligarquia paulista e colocadas outras vezes ao longo de sua história sob pressão da política extra-universitária, as ciências humanas da USP lograram resistir a esses assédios e instituir um espaço em que prevalece o padrão acadêmico.
Respeitados intelectuais uspianos convergem nesse diagnóstico e também na circunscrição de um dos fatores que levaram a esse resultado: a atuação das missões de professores estrangeiros que estiveram na capital paulista para instaurar o ensino e a pesquisa em ciências humanas na USP.
A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) -reunindo, nas humanas, filosofia, ciências sociais, letras, pedagogia, geografia e história- foi uma instituição genuinamente nova na criação da USP. Outras escolas congregadas na universidade -como as faculdades de direito, medicina e engenharia- são anteriores à fundação da USP (1934).
A FFCL era considerada a "medula" da nova universidade por nomes como Fernando de Azevedo (1894-1974), autor de "A Educação na Encruzilhada" -intelectual que teve papel decisivo nas reformas e nas campanhas que precederam a fundação da USP, tendo nela ocupado uma cátedra de sociologia.

Um passo rumo ao poder
De acordo com o livro "A Universidade da Comunhão Paulista" (ed. Autores Associados/Cortez), da professora aposentada de sociologia da USP Irene Cardoso, o pleito pela instalação de uma universidade foi o remédio que um grupo da elite paulista à época reunido em torno do jornal "O Estado de S.Paulo" prescreveu para o que considerava a degeneração das oligarquias brasileiras.
O núcleo da nova universidade, na concepção dos fundadores identificado à FFCL, ao formar "elites poderosas", teria o condão de modernizar a sociedade brasileira a partir de São Paulo. Atrelado a esse projeto, havia um outro mais concreto: o retorno dos paulistas ao poder federal após a derrocada da República Velha e as derrotas para o regime de Getúlio Vargas, implantado em 1930.
Mas a intenção de transformar a universidade num meio para atingir objetivos político-partidários de seu grupo patrocinador não vingou. Entre os que argumentam nesse sentido está o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, aposentado compulsoriamente pelo regime militar em 1969.
Em linha semelhante segue o crítico literário e escritor Davi Arrigucci Jr., professor aposentado da USP: "A instituição que em 1934 foi criada para reproduzir os quadros dirigentes da burguesia paulista na verdade gerou um pensamento crítico radical e contrário, em muitas ocasiões, aos desígnios da classe que tinha fundado a universidade".

Missionários do século 20
Segundo grande parte dos intelectuais ouvidos, a atuação dos mestres estrangeiros contratados para fundar as ciências humanas na USP ajudou a instituição a escapar da instrumentalização política. "As missões neutralizaram as intenções do projeto político-ideológico do grupo de "O Estado de S.Paulo'", diz Irene Cardoso.
Nas missões, quase todas francesas, estiveram Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide (sociologia); Gilles-Gaston Granger e Gérard Lebrun (filosofia); Pierre Hourcade e o italiano Giuseppe Ungaretti (letras); Fernand Braudel e Emile Léonard (história); e Pierre Mombeig (geografia).
"Os professores que vieram formar a USP ensinavam a pensar, como fazer perguntas que possibilitassem respostas objetivas e até como escrever de modo ordenado, à moda das dissertações francesas", escreve FHC.
Num passo além, o filósofo José Arthur Giannotti (outro retirado à força da USP pelo AI-5) diz que "o modo de pesquisa uspiano se baseava num projeto de universalização e modernização, enquanto outros projetos [em outras áreas do país] estavam mais relacionados a tendências regionais".
Para o ex-ministro Francisco Weffort -professor aposentado de ciência política-, duas das variantes que caracterizam as ciências humanas na USP são a influência francesa e a "adesão mais numerosa por parte dos pesquisadores a alguma concepção das humanas como ciência positiva".
Para exemplificar seu argumento, Weffort cita a trajetória de Florestan Fernandes (1920-1995). Seguidor imediato da prescrição dos professores franceses na sociologia, o grande projeto de Florestan, até meados dos anos 50, foi o de estabelecer padrões científicos em sua disciplina.
Num segundo momento, o mentor da geração de intelectuais como FHC, Octavio Ianni e Maria Sylvia de Carvalho Franco passou a conceber a participação dos intelectuais nos debates de temas nacionais. Foi o caso na criação do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (1961), fundado na tentativa de compreender, para superar, os entraves à modernização capitalista no Brasil.
Com o golpe militar de 1964 e o endurecimento do regime no final de 68 -após o Ato Institucional nš 5-, os parâmetros dessa evolução mudaram. De um lado, houve a tentativa, que foi geral na FFCL de 64 a 68, de prevenir-se de expurgos através da titulação rápida de jovens pesquisadores. De outro, ocorreu politização progressiva de alunos e professores.
Essa atitude de politização que se antepunha mecanicamente ao Estado, para FHC, era "questão de decência" após 64. Mas é criticada pelo ex-presidente por ter-se, segundo ele, mantido formalmente intacta em alguns círculos das ciências humanas da USP e de outras universidades brasileiras após a redemocratização.

História e estrutura
Se a lição francesa instituiu padrões como o do estudo circunscrito e metódico de campo na sociologia, na filosofia a marca da instauração da USP é, nas palavras de Bento Prado Jr., "o reconhecimento da história da filosofia como instrumento indispensável ao trabalho filosófico".
"Uma certa disciplina do estudo atento, essencialmente imanente, dos textos clássicos", prossegue o professor da Universidade Federal de São Carlos -também aposentado da USP pelo AI-5-, foi a prescrição para prevenir a jovem filosofia universitária paulista do mal do dogmatismo e do ensaísmo até então prevalecentes.
A vantagem do mergulho uspiano na leitura dos clássicos -que afastou a indagação sobre a verdade ou a falsidade dos textos para aprimorar-se na compreensão e na exposição sistemática dos sistemas filosóficos- convive até hoje com efeitos colaterais.
Paulo Arantes, que se dedicou a historiar a evolução da filosofia na USP, detecta uma certa "timidez uspiana", que resiste a transitar da exposição profissional e metódica dos sistemas para a produção de filosofia propriamente dita. A questão perpassa seu livro "Um Departamento Francês de Ultramar" (ed. Paz e Terra).
Outro efeito adverso da profissionalização é levantado por Ruy Fausto, professor emérito da USP: a especialização excessiva. "Hoje, com um ou dois anos de curso, os alunos já escolhem o seu autor e, às vezes, a obra específica de que se ocuparão. Em alguns anos serão grandes especialistas, ignorantes, ou quase, em tudo o que não se referir ao seu objeto, inclusive no âmbito da filosofia", diz.
O signo da ruptura, ressaltado na fundação das ciências sociais e da filosofia uspianas, parece no entanto menos marcante quando se trata de assinalar o significado da USP no âmbito da historiografia e da crítica literária.
Em entrevista no nš 22 da "Revista de Estudos Avançados", o historiador Fernando Novais diz que "no caso da história, essa transformação [passagem do amadorismo ao profissionalismo nas ciências] não é tão nítida. Havia mais longa tradição e alguns historiadores de maior projeção, como Capistrano de Abreu".
Na crítica literária, segundo Arrigucci Jr., o diálogo crítico com a tradição também foi importante. Para ele, uma "vontade de integração entre literatura e sociedade" é a marca da escola inaugurada por Antonio Candido e o seu método, uma constante incorporação do que há de melhor na tradição de críticos como Sílvio Romero e Machado de Assis.


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