São Paulo, domingo, 23 de setembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BLOCOS
Com os EUA concentrados na guerra contra o terror, região será menos prioritária

América Latina volta à "irrelevância"

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

O mundo novo que supostamente emergirá da guerra contra o terrorismo declarada pelos Estados Unidos devolverá a América Latina à "irrelevância".
A avaliação é de Kenneth Maxwell, historiador britânico que é considerado um dos maiores especialistas em América Latina no mundo todo e trabalha com o Council on Foreign Relations, de Nova York.
Mas não é uma opinião isolada. Miguel Diaz, diretor do Projeto América do Sul do CSIS (Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, também dos EUA), é mais delicado na forma, mas idêntico no conteúdo: "A concentração dos Estados Unidos na guerra contra o terrorismo fará com que tudo o mais fique em segundo plano. Logo, a América Latina será menos prioritária".
Não se trata apenas de palpite de especialista. Por trás da previsão, há um verdadeiro teorema assim desenhado por Maxwell:
1 - Antes do 11 de setembro (dia dos atentados em Nova York e contra o Pentágono), "comércio, economia e fluxo de capitais tinham precedência sobre as relações geopolíticas e militares";
2 - Agora, "esse paradigma foi suplantado por um retorno aos cálculos, do ponto de vista dos EUA, sobre a real capacidade de as nações contribuírem para a luta contra o terrorismo";
3 - Maxwell fecha o círculo: "Ironicamente, as prioridades voltam a ser os velhos aliados na Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte" e possivelmente alguns novos "amigos" na periferia do Afeganistão e o Paquistão".

Adesão
A América Latina sai do radar, "a não ser o México, que será inevitavelmente parte da reelaboração do que os Estados Unidos estão agora chamando de defesa da pátria-mãe" ("homeland defense", expressão que entrou em voga após os atentados).
A maneira de a América Latina sair da irrelevância seria, exatamente, aderir incondicionalmente à guerra contra o terrorismo.
"Uma forte demonstração de suporte e cooperação ajudaria a fortalecer o relacionamento entre os países do hemisfério. A atitude de esperar para ver ou ceticismo puro e simples inclinará a Casa Branca de George W. Bush a rebaixar o hemisfério em suas prioridades, exceto México/América do Norte", diz outro celebrado latino-americanista, Riordan Roett (Universidade Johns Hopkins).
Um especialista brasileiro acha, no entanto, que a pressão para que a América Latina apóie os EUA pode ser mais uma oportunidade que uma coerção.
Henrique Altemani, coordenador-adjunto do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP, cita o fato de o governo brasileiro ter proposto uma reunião com base no Tiar (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca) como "idéia interessante".
Explica: "Desloca a discussão ou a cobrança do bilateral para uma relação multilateral, do emocional para o institucional, sendo que o tratamento nos planos institucional e multilateral tende a reduzir a capacidade de pressão norte-americana".

Alca
Segurança à parte, como fica o principal projeto das Américas antes dos atentados, a discussão da Alca (Área de Livre Comércio das Américas, prevista para englobar os 34 países do continente, excluída apenas Cuba)?
Nesse capítulo, as opiniões são contraditórias. O brasileiro Altemani acredita que "o crescente xenofobismo" norte-americano, provocado pelos atentados, tornará mais difícil a obtenção pelo Executivo da TPA (Autoridade para Promoção Comercial).
Trata-se de um mecanismo pelo qual o Congresso dá ao Executivo autorização para negociar tratados comerciais que, depois, o Parlamento apenas aprova ou rejeita em bloco, mas não emenda.
A TPA (antes chamada de "fast track") é considerada vital para o andamento de negociações comerciais, porque os parceiros dos EUA hesitam muito em fazer acordos que, depois, possam ser estraçalhados pelo Congresso.
Ao contrário de Altemani, Bruce Stokes, especialista em comércio do Council on Foreign Relations, prevê que o governo Bush "enrole a bandeira em torno da questão e imponha a sua agenda".
Mas, atenção, tanto Stokes quanto Miguel Diaz (CSIS) acham que a pressão do governo Bush estará centrada nas negociações multilaterais, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, deixando de lado a Alca.
"É muito interessante notar que a Alca nunca é mencionada" (nas avaliações sobre o efeito dos atentados nas negociações comerciais), atesta Stokes.
Reforça Diaz: " Pelo menos no momento, a Alca será colocada em banho-maria".

Colômbia
Outra interrogação que mesmo os especialistas não se sentem em condições de dissolver é sobre a hipótese de uma ação direta dos EUA na Colômbia, país que abriga três grupos listados como terroristas pelo Departamento de Estado (o ELN, Exército de Libertação Nacional; as Farc, Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia; e as AUC, Autodefesas Unidas da Colômbia, organização paramilitar de extrema direita).
"É cedo para saber o que a Casa Branca fará com o Plano Colômbia", diz Riordan Roett. Miguel Diaz é mais específico: acha que os EUA se concentrarão inicialmente nos responsáveis pelos ataques de 11 de setembro. "Os EUA não podem espalhar a luta contra o terrorismo pelo mundo todo."
De todo modo, dois dos especialistas coincidem em que há uma maneira de a América Latina eventualmente superar a "irrelevância": invertendo a agenda, propõe Henrique Altemani.
"Parto do princípio de que a Alca já correspondia a um processo de renegociação do sistema interamericano, só que, talvez a partir de agora, se possa, a partir da segurança, renegociar o sistema regional e introduzir as questões econômicas."
Corrobora Riordan Roett: "Deveria haver uma agenda mais abrangente que incluísse fronteiras, serviços de inteligência, comércio e investimento, terrorismo e assuntos correlatos".
É um pouco essa a agenda que o presidente Fernando Henrique Cardoso gostaria de adotar para uma cúpula latino-americana que ele está articulando. Falta só combinar com os norte-americanos, que, por ora, olham fixamente para o outro lado do mundo.



Texto Anterior: Armas: Crise impulsiona indústria bélica
Próximo Texto: Capital alvejado: Terrorismo afeta economia, diz Bush
Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.