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Responsabilidade pelas diferenças é da sociedade atual
FLÁVIO GOMES
MARCELO PAIXÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
No período colonial e
imperial brasileiro,
um modelo de escravidão extremamente brutal sobre suas vítimas não deixara de
lograr mecanismos de mobilidade social para alguns descendentes de escravizados que se
tornaram libertos.
No Brasil do século 19, em algumas regiões, eles poderiam
chegar mesmo a 80% do total
da população livre; dados semelhantes aos de Cuba. No Sul
dos Estados Unidos, por exemplo, o índice era de apenas 4%.
Alguns destes chegaram -de
forma ainda hoje inédita- aos
altos escalões da vida cultural e
política do país. A lista não é tão
pequena assim: Rebouças, Patrocínio, Caldas Barbosa, Machado de Assis.
Na contramão, há quem afirme que a liberdade conquistada pela alforria, em nossa antiga sociedade, era extremamente precária -em razão da cor,
tornando as pessoas libertas de
tez mais escura no máximo
quase-cidadãos.
De qualquer maneira, se é
verdade que nossa realidade
colonial e imperial guarda uma
complexidade própria, o fato é
que ao longo do século 20 a antiga sociedade acabaria abrigando um desconcertante paradoxo. O escravismo não tivera nada de harmonioso, mas o
sistema de dominação abria
margens para infiltrações.
Para as experiências do pós-emancipação, cor, raça e racismo foram paisagens permanentemente reconfiguradas.
Ordem, trabalho, disciplina e
progresso dialogaram com as
políticas públicas de aparato
policial e criminalização dos
descendentes dos escravizados
e suas formas de manifestação
cultural e simbólica.
No projeto de nossas elites
desse período vigorou a concepção de que o desenvolvimento socioeconômico era incompatível com nossas origens
ancestrais em termos étnicos.
Países com maiorias não-brancas não atingiram, e jamais alcançariam, o tão desejado progresso. Os perniciosos efeitos
do sistema escravista foram associados às suas vítimas, ou seja, os escravizados.
No contexto posterior aos
anos 1930, a valorização simbólica da mestiçagem seria um
importante combustível ideológico do projeto desenvolvimentista. Dado o momento
histórico em que fora forjado,
se pode até reconhecer que tal
discurso poderia abrigar algum
tipo de perspectiva progressista. Por outro lado, ao consagrar
como natural a convergência
das linhas de classe e cor, tal lógica tentou convencer que diferenças sociais derivadas de
aparências físicas (cor da pele,
traços faciais), conquanto nítidas e persistentes, inexistiam.
Ou se existiam eram para ser
esquecidas, abafadas ou comentadas no íntimo do lar.
Como tal, o mito da democracia racial serviu não apenas
ao projeto de industrialização
do país. Também se associou a
um modelo de desenvolvimento que viria a ser assumidamente concentrador de renda e poder político em termos sociorraciais, dado que tais assimetrias passaram a ser incorporadas à paisagem das coisas.
Mito da herança
Após o fim do mito da democracia racial, parece que se torna necessário romper com uma
segunda lenda. A de que as assimetrias de cor ou raça sejam
decorrência direta do escravismo, findado há 120 anos.
Tal compreensão retira da
sociedade do presente a responsabilidade pela construção
de um quadro social extremamente injusto gerado a cada
instante, colocando tal fardo
apenas nos ombros do distante
passado. Nosso racismo está
embebido de uma forte associação entre cor da pele e uma
condição social esperada ou desejada. Tal correlação atua nos
diversos momentos da vida social, econômica e institucional.
A leitura dos indicadores sociais decompostos pela variável
cor ou raça expressa a dimensão de tais práticas sociais inaceitáveis. Se os afrodescendentes se conformam com tal realidade, fica então ratificado o mito. Se não se conformam, dizem
os maus presságios: haverá
ruptura de nossa paz social.
O racismo e as assimetrias de
cor ou raça do presente não são
produtos da escravidão, muito
embora tenham sido vitais para
o seu funcionamento. Em sendo uma herança perpétua e
acriticamente atualizada, o
passado fez-se presente.
O que fazer para superar este
legado? Este é o desafio de todos nós, habitantes deste sexto
século brasileiro que há pouco
despertou.
FLÁVIO GOMES é professor de história da UFRJ
e co-organizador da coletânea "Quase-Cidadão
-Antropologias e Histórias da Pós-Emancipação
no Brasil" (ed. FGV)
MARCELO PAIXÃO é professor de economia da
UFRJ e co-organizador do "Relatório Anual das
Desigualdades Raciais no Brasil -2007-2008"
(ed. Garamont)
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