São Paulo, domingo, 28 de maio de 2006

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Compre o futpopbolista

por Washington Olivetto

Maio de 1948.
O centroavante Heleno de Freitas, do Botafogo do Rio de Janeiro, assinava com o Boca Juniors, da Argentina, o maior contrato já feito até então por um jogador de futebol brasileiro: US$ 300 mil de luvas e US$ 9.000 por mês de salário. Ou seja, 1 milhão de cruzeiros, quantia absolutamente fantástica, capaz de comprar três apartamentos de sala e dois quartos de frente pro mar no Posto 6, em Copacabana, ou um apartamento de três quartos em plena Vieira Souto, em Ipanema, sobrando dinheiro ainda para adquirir um automóvel Dodge 1947 superluxo de quatro portas. Naquela época, Heleno de Freitas era a exceção das exceções, fato que o recém-lançado livro do jornalista Marcos Eduardo Neves ("Nunca Houve um Homem como Heleno") conta em detalhes. Enquanto a maioria dos jogadores de futebol andava de bonde, ele desfilava no seu Cadillac conversível. Enquanto os grandes craques se vestiam como bancários de terceiro escalão, ele fazia seus ternos com De Cicco, o alfaiate do presidente Getúlio Vargas. Enquanto seus companheiros de concentração ouviam Linda Batista, ele ouvia Billie Holiday. Enquanto os cobrões depois dos jogos freqüentavam a Taberna da Glória e o Dancing Avenida, ele freqüentava o Cassino Atlântico e o Cassino da Urca. Enquanto todos liam superficialmente as manchetes do "Jornal dos Sports", ele lia atentamente o romance "O Lustre", de Clarice Lispector. Enquanto os pais de família nem sequer permitiam que suas filhas olhassem para jogadores de futebol, ele era assediado, com amplo consentimento dos familiares, pela maioria das herdeiras dos grã-finos cariocas. Heleno era um pop star numa época em que essa expressão ainda não existia. Ou uma estrela - como Francisco Alves, "O Rei da Voz", e Orlando Silva, "O Cantor das Multidões". Heleno de Freitas morreu louco e abandonado num pequeno sanatório em Barbacena, no centro-leste de Minas Gerais, no dia 8 de novembro de 1959. Vítima da sífilis e dele mesmo. Março de 2006. A consultoria alemã BBDO divulgou a lista dos dez jogadores de futebol com maior valor comercial no mundo. Em primeiro lugar, o brasileiro Ronaldinho Gaúcho, que vale US$ 56,4 milhões, seguido do inglês David Beckham (US$ 54 milhões), do inglês Wayne Rooney (US$ 52 milhões), do camaronês Samuel Eto'o (US$ 37 milhões), do argentino Lionel Messi (US$ 36,5 milhões), do sueco Zlatan Ibrahimovic (US$ 36,2 milhões), do brasileiro Ronaldo Fenômeno (US$ 35,3 milhões), do inglês Frank Lampard (US$ 34,6 milhões), do francês Thierry Henry (US$ 34,5 milhões) e do alemão Michael Ballack (US$ 34,4 milhões). Deixando as análises técnicas de lado, devemos lembrar que o segundo lugar do meia David Beckham, muito próximo do primeiro lugar do genial Ronaldinho Gaúcho, deve-se ao fato de Beckham ser considerado um dos jogadores mais vaidosos e bonitos da atualidade e, por isso mesmo, bastante requisitado para campanhas publicitárias. Deixando os julgamentos morais de lado, devemos também lembrar que o terceiro colocado da lista, Wayne Rooney, do Manchester United, briga neste momento por uma dívida de jogatina com o igualmente milionário, apesar de não listado entre os 10 mais, Michael Owen - ex-jogador de Liverpool e Real Madrid e hoje do Newcastle. Segundo os tablóides londrinos, Rooney perdeu US$ 1,2 milhão para Owen no carteado e se recusa a pagar. São realmente de dar inveja a Mick Jagger e Bono Vox os números financeiros e as possibilidades de idiossincrasias e permissividade que cercam e privilegiam esses novos ídolos pop, os futpopbolistas. Donos de Ferraris do ano, cortes de cabelo personalizados, roupas presenteadas por costureiros famosos, Rolex de ouro nos dois pulsos, namoradas modelos iniciantes ou consagradas, os futpopbolistas são hoje tudo aquilo que o craque Heleno ingenuamente imaginava ser, ou que o rapper Eminem pretensiosamente pensa que é. Até porque qualquer um desses futpopbolistas se apresenta todas as semanas, ao vivo e via satélite, para platéias bem maiores do que as de qualquer outro astro pop. Com direito a área VIP e otras cositas más. Aliás - e por falar em pop -, a gravadora Universal negocia neste momento com Ronaldinho Gaúcho a sua participação num disco temático sobre a Copa. Ronaldinho vai selecionar as faixas do disco e gravar uma canção chamada ""O Goleador". Nosso ministro Gilberto Gil, que é da gravadora Warner, também compôs uma canção para a Copa: o samba "Ballet de Berlim", gravado em conjunto com o cervejeiríssimo Zeca Pagodinho. O samba é magnífico (uma espécie de "Aquele Abraço" do século 21) e a gravação impecável. Mas periga o futpopbolista Ronaldinho Gaúcho sozinho vender mais discos e tocar mais vezes nas rádios do que a consagrada dupla de cantores e compositores da MPB. Ainda comparando com o universo da música: Bob Marley, que, como você sabe, não morreu, continua vendendo algumas camisetas reggae para os surfistas do Arpoador, no Rio de Janeiro. Na maioria, são camisetas piratas e baratinhas. Pechinchando um pouco com os camelôs, você leva a sua por uns dez reais. Enquanto isso, a loja do Real Madrid, em Madri, vendeu em apenas sete horas, no dia do lançamento, 8.000 camisetas oficiais com o número 23 e o nome Beckham nas costas. E vendeu também, entre o início de setembro e o meio de novembro de 2005, mais de 200 mil camisetas com o número 9 e o nome Ronaldo nas costas. Preço das camisetas de Beckham e Ronaldinho: 77 cada uma (cerca de R$ 215). E não adianta pechinchar. Futebol definitivamente virou business e show business. Nada mais justo que os artistas sejam bem pagos. São eles que fazem o espetáculo e uma porção de gente ganhar dinheiro. A seguradora americana Integrated Benefit Consultant, de Nova York, estimou recentemente o valor do seguro de vida de alguns dos principais jogadores do futebol mundial: Ronaldinho Gaúcho -US$ 30 milhões; Beckham - US$ 30 milhões; Ronaldo Fenômeno -US$ 25 milhões; Zidane -US$ 25 milhões. Valores bem menores do que qualquer um deles vale vivo, mas localizados quase na mesma escala de dígitos do valor da apólice de proteção mais cara da história da humanidade: a da Monalisa, de Leonardo da Vinci, que foi segurada por US$ 100 milhões. Monalisa é arte, atletas são artistas. Artistas que produzem arte e dinheiro. A cada ano, a Nike desembolsa US$ 1,3 bilhão (11% do seu faturamento) em publicidade, contratando, entre outras coisas, atletas renomados como garotos-propaganda. Boa parte desse investimento vai para o futebol. A cada ano, a Nike fatura US$ 12,2 bilhões. Boa parte desse faturamento vem do futebol. Os astros futpopbolísticos exercem fascínio nas pessoas e vendem de tudo. De jóias a chupetas. Só o Real Madrid tem mais de 700 itens licenciados. Faturou com eles, em 2005, US$ 76 milhões, US$ 12,5 milhões a mais do que em 2004. E deve multiplicar esse faturamento em 2006, ano da Copa do Mundo, quando os spotlights se localizarão ainda mais em cima da cabeça, corpo e membros dos futpopbolistas. A dona dos spotlights é a mídia, que também se beneficia. Aqui no Brasil, só a Rede Globo de televisão deve faturar este ano com o futebol (Copa do Mundo, Campeonato Brasileiro, Libertadores e outros torneios nacionais) algo como R$ 1.004.300.000,00. Sendo que cada uma das seis cotas masters de patrocínio da Copa foi vendida por R$ 59,8 milhões. Vendida é modo de dizer. Na verdade, cada uma dessas cotas foi disputada quase a tapa por anunciantes que têm consciência de quanto esses patrocínios podem ajudar na comercialização dos seus produtos. A Rede Globo é a maior, mas não é a única exploradora desses campos minados de ouro. O futebol 2006 vai incrementar também o faturamento da RedeTV!, do SBT, da Bandeirantes, da Band News, da Band Sport e da ESPN Brasil. Assim como deve fazer crescer a receita da Editora Abril, da Editora Globo, das rádios AM/FM e dos jornais em geral. A mídia se beneficia, as agências de publicidade se beneficiam e até mesmo os clubes brasileiros, nem sempre tão bem administrados, acabam se beneficiando do futebol pós-profissional. São Paulo e Corinthians renovaram seus patrocínios de camisa com a LG e a Samsung por algo em torno de R$ 15 milhões por ano. Números significativos para o nosso mercado, mas ainda pequenos se comparados aos 24 milhões que a Juventus de Turim recebe da Tamoil ou aos 17 milhões que o Bayern de Munique fatura com a T-Mobile. Obviamente, Juventus e Bayern são infinitamente menores do que São Paulo e Corinthians, mas contam com calendários bem estruturados, dirigentes profissionais -ainda que a Itália viva um escândalo agora- e uma série de coisas que não temos no Brasil -o que certamente explica o fato de a maioria das nossas grandes estrelas jogar no exterior. Mas essa é uma outra história, que fica para uma outra vez. E vamos voltar aos patrocínios das camisas. Até mesmo o Barcelona, que sempre se recusou a ser patrocinado, agora parece disposto a quebrar uma tradição de séculos e finalmente permitir a exibição de uma mensagem comercial nas suas ""malhetas" sagradas. Recentemente, seu presidente, Joan Laporta, esteve na China negociando um acordo de 100 milhões por ano para a sua equipe promover Pequim como sede dos Jogos Olímpicos de 2008. Os números são enormes, mas o fato é maior ainda. Se até a Olimpíada, mostruário de todos os esportes, que durante anos trataram o futebol com um certo desprezo, agora está interessada nesse esporte como veículo de comunicação e vendas, é porque o futebol está mesmo com a bola toda. Tomara que continue assim por muito tempo, que a maioria saiba aproveitar o seu momento e que ninguém acabe louco como o Heleno de Freitas.


WASHINGTON OLIVETTO, 53, é publicitário

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