São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2008

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HORIZONTE DE CONCRETO

Paulistano sofre e sonha com vida melhor

Somente com ensino fundamental e vivendo na periferia, Maria de Lourdes exemplifica o paulistano radiografado pelo Datafolha

WILLIAN VIEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

As mãos calejadas de Maria de Lourdes Clemente Novaes, 42, tremiam. É que fazia duas décadas que ela não estudava e agora apresentaria um seminário de administração. Não, não é faculdade -ela fez só a oitava série-, mas um curso profissionalizante (com aulas de telemarketing e atendimento) que, ela tem fé, vai alçá-la ao seu sonho de sua vida: ser secretária.
Maria ajeita o cabelo "vermelho intenso" e sorri, sem supor que é o exemplo vivo do morador médio da maior metrópole do país -aquele que enfrenta o dia-a-dia da periferia (onde vive a maioria de São Paulo), com trânsito e violência demais; lazer, saúde, cultura de menos -, que sente o peso real das estatísticas sem sonhar com números. Tudo, com um sorriso.
"Acho gostoso falar com as pessoas", diz Maria, certa da nova profissão. Em Guaianases (extremo leste) há 40 anos, fazendo unhas para engordar a pensão -ainda que a alergia à acetona inche os dedos cortados-, ela quer mudar de vida.
Por isso, há dois meses, vai de Guaianases a Itaquera fazer o curso (a pé, sem dinheiro para o ônibus). Leva uma hora e meia, todo dia. Nunca faltou. O que a move é a "fé em Deus" de que vai se sentar em uma cadeira, maquiada e produzida, e "atender bem às pessoas", com o salário fixo caindo no fim do mês.
"Um emprego numa recepção, meio período, seria maravilhoso", suspira. Uma vaga integral seria inviável, já que o filho Henrique, 9, tem diabetes tipo 1 e precisa de insulina duas vezes ao dia. E é Maria quem o leva, três vezes por mês, ao hospital na zona sul (só a ida são duas horas, dois ônibus e dois metrôs). O dinheiro do marido (só no papel) paga só o aluguel. Ela faz bico de manicure -para alimentar os sonhos da família.
O filho menor quer um quarto (hoje os três dividem dois cômodos) e o maior, ser engenheiro mecatrônico. "Ele diz: "Mãe, se a gente tivesse carro pra passear seria tão bom". E eu digo: "Nem carro nem dinheiro, paciência, a vida é assim."

"Já foi pior"
Maria gosta da zona leste, mais de Itaquera, onde leva os filhos ao shopping -"só para passear", diz, rindo às lágrimas. É que "já foi pior". Quando chegou a São Paulo, bebê, com os pais, lavradores de Minas, "não tinha o que comer nem o que vestir. Mas era melhor que lá."
Casou aos 21 e teve três filhos. Por eles, virou corintiana e, por eles, engoliu a depressão. "Ela chegou aqui sem vontade de viver", diz o padre Rosalvino. "Hoje está feliz, graças a Deus." Assim pensa Maria, católica que reza toda noite, por um emprego ou por proteção. "Guaianases é perigoso, não tem escola, hospital, nem baile pra ir" (sertanejo, que adora, como boa parte dos paulistanos). Ouve no rádio e na TV, de Leonardo a Edson e Hudson.
Assim, Maria, agonia e resignação, é o retrato da gente de São Paulo; que vive na periferia torcendo a cada dia para que tudo dê certo; mas que, enquanto não dá, aproveita os pequenos luxos da vida. Os dela são os celulares -dois, um deles novo. Só falta usar. Ela não sabe nenhum de seus números.




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