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HORIZONTE DE CONCRETO
Paulistano sofre e sonha com vida melhor
Somente com ensino fundamental e vivendo na periferia, Maria de Lourdes exemplifica o paulistano radiografado pelo Datafolha
WILLIAN VIEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL
As mãos calejadas de Maria
de Lourdes Clemente Novaes,
42, tremiam. É que fazia duas
décadas que ela não estudava e
agora apresentaria um seminário de administração. Não, não
é faculdade -ela fez só a oitava
série-, mas um curso profissionalizante (com aulas de telemarketing e atendimento) que,
ela tem fé, vai alçá-la ao seu sonho de sua vida: ser secretária.
Maria ajeita o cabelo "vermelho intenso" e sorri, sem supor
que é o exemplo vivo do morador médio da maior metrópole
do país -aquele que enfrenta o
dia-a-dia da periferia (onde vive a maioria de São Paulo), com
trânsito e violência demais; lazer, saúde, cultura de menos -,
que sente o peso real das estatísticas sem sonhar com números. Tudo, com um sorriso.
"Acho gostoso falar com as
pessoas", diz Maria, certa da
nova profissão. Em Guaianases
(extremo leste) há 40 anos, fazendo unhas para engordar a
pensão -ainda que a alergia à
acetona inche os dedos cortados-, ela quer mudar de vida.
Por isso, há dois meses, vai de
Guaianases a Itaquera fazer o
curso (a pé, sem dinheiro para o
ônibus). Leva uma hora e meia,
todo dia. Nunca faltou. O que a
move é a "fé em Deus" de que
vai se sentar em uma cadeira,
maquiada e produzida, e "atender bem às pessoas", com o salário fixo caindo no fim do mês.
"Um emprego numa recepção, meio período, seria maravilhoso", suspira. Uma vaga integral seria inviável, já que o filho Henrique, 9, tem diabetes
tipo 1 e precisa de insulina duas
vezes ao dia. E é Maria quem o
leva, três vezes por mês, ao hospital na zona sul (só a ida são
duas horas, dois ônibus e dois
metrôs). O dinheiro do marido
(só no papel) paga só o aluguel.
Ela faz bico de manicure -para
alimentar os sonhos da família.
O filho menor quer um quarto (hoje os três dividem dois cômodos) e o maior, ser engenheiro mecatrônico. "Ele diz:
"Mãe, se a gente tivesse carro
pra passear seria tão bom". E eu
digo: "Nem carro nem dinheiro,
paciência, a vida é assim."
"Já foi pior"
Maria gosta da zona leste,
mais de Itaquera, onde leva os
filhos ao shopping -"só para
passear", diz, rindo às lágrimas.
É que "já foi pior". Quando chegou a São Paulo, bebê, com os
pais, lavradores de Minas, "não
tinha o que comer nem o que
vestir. Mas era melhor que lá."
Casou aos 21 e teve três filhos. Por eles, virou corintiana
e, por eles, engoliu a depressão.
"Ela chegou aqui sem vontade
de viver", diz o padre Rosalvino. "Hoje está feliz, graças a
Deus." Assim pensa Maria, católica que reza toda noite, por
um emprego ou por proteção.
"Guaianases é perigoso, não
tem escola, hospital, nem baile
pra ir" (sertanejo, que adora,
como boa parte dos paulistanos). Ouve no rádio e na TV, de
Leonardo a Edson e Hudson.
Assim, Maria, agonia e resignação, é o retrato da gente de
São Paulo; que vive na periferia
torcendo a cada dia para que
tudo dê certo; mas que, enquanto não dá, aproveita os pequenos luxos da vida. Os dela
são os celulares -dois, um deles novo. Só falta usar. Ela não
sabe nenhum de seus números.
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