São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2008

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ESMIUÇANDO SÃO PAULO

Vamos tietar a paulicéia

A minha utopia é transformar São Paulo de terra de ninguém para cidade de todo mundo

LUIZ RUFFATO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Das centenas de dados surgidos do seqüenciamento genético do DNA do paulistano, patrocinado por essa Folha, vou me ocupar apenas de um, tomando-o como emblema e síntese.
A maioria da população da cidade (64%) não participa de qualquer movimento social, quer dizer, não se engaja em nenhuma atividade que envolva ação coletiva.
Talvez esse índice não seja muito diferente do que poderíamos encontrar na média do restante do país, mas no caso de São Paulo o problema torna-se particularmente dramático.
A sociedade brasileira, nascida de um regime segregacionista -a dizimação dos índios, a escravização dos negros, a exploração da mão-de-obra dos imigrantes miseráveis da Europa, Japão e Oriente Médio-, perpetuou e ampliou o abismo entre ricos e pobres a partir da década de 1950, quando, por meio dos imensos e caóticos deslocamentos populacionais, fomentou a vertiginosa industrialização do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Ainda hoje, boa parte dos habitantes de São Paulo tem seus laços afetivos vinculados a outras regiões (do Brasil ou do exterior). Mas, se é traumática a imigração (quando o curso natural da história pessoal é interrompido), ainda resta o consolo, quase sempre ilusório, de um retorno à terra natal, o presente profundamente contaminado pelo passado.
Nem isso, entretanto, sobra para o descendente do imigrante: não há para onde voltar, o presente flutua no presente, sem raízes. E essa crise de identidade, que perpassa todos os níveis sociais, toma uma forma particularmente perversa na classe média baixa e no proletariado, onde à sensação de não pertencimento alia-se a falta de perspectivas de mudanças.
Decorre daí uma estranha percepção, a de que estamos precariamente acampados em São Paulo: provisórios são os edifícios, provisória a paisagem, provisórias as amizades, provisória a vida... E, acossados por uma terrível catástrofe que não conseguimos identificar, abandonamos a cidade a cada feriado prolongado, a cada período de férias, carros e ônibus em uma marcha alucinada pelo marvermelho das estradas em busca da terra prometida de leite e mel, que está sempre além, no litoral, no interior, nas montanhas... Rejeitamos São Paulo, porque a identificamos com o trabalho, o "mal" para o qual o homem foi condenado desde o início dos tempos...
O que necessitamos, na minha opinião, é reconstruir nossa visão de cidadania. Temos de aprender a amar a cidade, aceitá-la como ela é, com suas qualidades e defeitos. Amar é alimentar as coisas boas e ajudar na superação das ruins. Para isso, precisamos, antes de mais nada, mudar nossa compreensão de "bem público". Hoje entendemos "aquilo que é de todo mundo" como "aquilo que não é de ninguém" -quando deveríamos traduzir por "aquilo que é de cada um de nós". Se nos dedicássemos um pouquinho a São Paulo, a nossa cidade seria melhor para todos. Deveríamos lutar para que cada bairro fosse um núcleo urbano integral, com praças, coretos, cinemas, teatro, e que cada paulistano, nativo ou adotado, usufruísse de sua felicidade aqui e agora.
Uma vez, um motorista de táxi me disse que o irritava profundamente que os políticos só se lembravam dele de quatro em quatro anos. Eu perguntei: mas não é assim também com você? Você só se lembra deles de quatro em quatro anos. A minha utopia é transformar São Paulo de terra de ninguém para cidade de todo mundo.


LUIZ RUFFATO é escritor


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