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ESMIUÇANDO SÃO PAULO
Vamos tietar a paulicéia
A minha
utopia é transformar
São Paulo
de terra de ninguém
para cidade
de todo
mundo
LUIZ RUFFATO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Das centenas de dados
surgidos do seqüenciamento
genético do DNA do paulistano, patrocinado por essa
Folha, vou me ocupar apenas de um, tomando-o como
emblema e síntese.
A maioria da população da
cidade (64%) não participa
de qualquer movimento social, quer dizer, não se engaja
em nenhuma atividade que
envolva ação coletiva.
Talvez esse índice não seja
muito diferente do que poderíamos encontrar na média do restante do país, mas
no caso de São Paulo o problema torna-se particularmente dramático.
A sociedade brasileira,
nascida de um regime segregacionista -a dizimação dos
índios, a escravização dos
negros, a exploração da mão-de-obra dos imigrantes miseráveis da Europa, Japão e
Oriente Médio-, perpetuou
e ampliou o abismo entre ricos e pobres a partir da década de 1950, quando, por meio
dos imensos e caóticos deslocamentos populacionais,
fomentou a vertiginosa industrialização do Rio de Janeiro e
de São Paulo.
Ainda hoje, boa parte dos habitantes de São Paulo tem seus
laços afetivos vinculados a outras regiões (do Brasil ou do exterior). Mas, se é traumática a
imigração (quando o curso natural da história pessoal é interrompido), ainda resta o consolo, quase sempre ilusório, de
um retorno à terra natal, o presente profundamente contaminado pelo passado.
Nem isso, entretanto, sobra
para o descendente do imigrante: não há para onde voltar, o
presente flutua no presente,
sem raízes. E essa crise de identidade, que perpassa todos os
níveis sociais, toma uma forma
particularmente perversa na
classe média baixa e no proletariado, onde à sensação de não
pertencimento alia-se a falta de
perspectivas de mudanças.
Decorre daí uma estranha
percepção, a de que estamos
precariamente acampados em
São Paulo: provisórios são os
edifícios, provisória a paisagem, provisórias as amizades,
provisória a vida... E, acossados
por uma terrível catástrofe que
não conseguimos identificar,
abandonamos a cidade a cada
feriado prolongado, a cada período de férias, carros e ônibus
em uma marcha alucinada pelo
marvermelho das estradas em
busca da terra prometida de leite e mel, que está sempre além,
no litoral, no interior, nas montanhas... Rejeitamos São Paulo,
porque a identificamos com o
trabalho, o "mal" para o qual o
homem foi condenado desde o
início dos tempos...
O que necessitamos, na minha opinião, é reconstruir nossa visão de cidadania. Temos de
aprender a amar a cidade, aceitá-la como ela é, com suas qualidades e defeitos. Amar é alimentar as coisas boas e ajudar
na superação das ruins. Para isso, precisamos, antes de mais
nada, mudar nossa compreensão de "bem público". Hoje entendemos "aquilo que é de todo
mundo" como "aquilo que não
é de ninguém" -quando deveríamos traduzir por "aquilo que
é de cada um de nós". Se nos dedicássemos um pouquinho a
São Paulo, a nossa cidade seria
melhor para todos. Deveríamos
lutar para que cada bairro fosse
um núcleo urbano integral,
com praças, coretos, cinemas,
teatro, e que cada paulistano,
nativo ou adotado, usufruísse
de sua felicidade aqui e agora.
Uma vez, um motorista de táxi me disse que o irritava profundamente que os políticos só
se lembravam dele de quatro
em quatro anos. Eu perguntei:
mas não é assim também com
você? Você só se lembra deles
de quatro em quatro anos. A
minha utopia é transformar
São Paulo de terra de ninguém
para cidade de todo mundo.
LUIZ RUFFATO é escritor
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