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Um presidente, muita esperança
ANTONIO CANDIDO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A vitória de Lula, nas condições em que ocorreu, parece
uma investidura histórica conferida pelo povo brasileiro. É como
se os eleitores tivessem sentido
que a mudança a que muitos aspiram só pudesse ser tentada por alguém desligado dos velhos hábitos da nossa política. Por isso, ricos e pobres, radicais e moderados, cultos e incultos lhe abriram
um crédito largo de confiança, esperando com certeza que possa
contribuir para as transformações
de que o país precisa.
Nisso tudo há, antes de mais nada, uma espécie de simbolismo.
Cansado das injustiças e dos erros
cometidos pelas elites, o povo
brasileiro resolveu confiar o seu
destino a alguém da classe operária, como se quisesse reconhecer
o direito que ela tem de participar
decisivamente no governo da nação, com ânimo de mudança. Em
todo o mundo, quantos trabalhadores manuais chegaram à chefia
do Estado? Bem poucos. Pela luta
armada e pela guerra, Tito na Iugoslávia; pelo voto, Fritz Ebert na
República de Weimar e Lech Walesa na Polônia. No Brasil, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva
simboliza a incorporação do
"quarto estado" às esferas que decidem o rumo do país.
Note-se que ele não é um trabalhador que, pelo esforço, conseguiu sair da sua classe e incorporar-se às elites dominantes, como
Lincoln. A singularidade no seu
caso é que continua essencialmente identificado aos interesses
da sua classe, mas decidido a
atender às necessidades de todo o
povo brasileiro.
Sob esse aspecto, a sua vitória
coroa um processo histórico iniciado com as lutas sociais do fim
do século 19 e acelerado depois de
1930 devido ao incremento da industrialização. As eleições de 1945
causaram surpresa ao alterarem a
composição social dos eleitos, não
mais escolhidos exclusivamente
segundo o critério das oligarquias. Nos legislativos e nas prefeituras, ingressaram representantes dos interesses populares,
mas de modo imperfeito na maioria dos casos, porque tanto o movimento quanto o voto operário
estavam subordinados à tutela do
Ministério do Trabalho, de maneira a conformá-los aos interesses patronais. O grande problema
seria, portanto, libertá-los desse
condicionamento, que atrapalhava a formação da sua consciência
política. Nesse sentido atuaram
partidos de esquerda, com êxito
parcial e variável.
Talvez seja possível dizer que o
momento decisivo veio com as
greves do ABC em meados do decênio de 1970, quando os trabalhadores manifestaram a sua maturidade plena e formaram a vanguarda da luta contra a ditadura
militar.
Ora, foi naquela quadra que
surgiu Lula como grande líder.
Agora, a sua escolha para presidir
o país significa não apenas o reconhecimento da sua notável capacidade, mas, também, da sua qualidade de representante dos trabalhadores, finalmente chamados a
participar do governo como força
ao lado de outras.
Decorrência da luta de classes?
Sim, mas de modo especial, porque essa vitória não é "tomada do
poder" pelo operariado.
É fruto de um movimento mais
amplo, no qual todas as classes da
sociedade reconheceram tacitamente o direito que ele tem de formar ao seu lado. Estamos num
momento de incorporação, não
de predomínio.
É claro que as elites procurarão
conformar Lula à sua imagem,
quebrando se possível a sua força
transformadora. Em política, riscos desse tipo são permanentes e
devem ser evitados, com o olhar
posto nos fundamentos ideológicos dos partidos de esquerda que
chegam ao poder.
Creio que o dos Trabalhadores
tem estrutura bastante aberta para comportar variações táticas e,
ao mesmo tempo, manter as diretrizes fundamentais, que pressupõem a luta constante pela justiça
social em todos os sentidos, porque sem igualdade efetiva não há
democracia real.
Na luta política, sempre difícil e
cheia se surpresas, há momentos
de radicalidade e momentos de
contemporização. Penso que estamos num momento de contemporização, porque será preciso
definir condutas de união nacional, não apenas na política interna, mas porque no campo internacional teremos de enfrentar um
fenômeno novo: a prepotência arrogante e a agressiva intolerância
assumidas pela potência hegemônica, esses Estados Unidos que
pretendem ser, cada vez mais,
palmatória do mundo e fiscal armado do comportamento dos
países, com base nos seus interesses econômicos fantasiados de fidelidade democrática.
À vista desse perigoso Leviatã, o
caminho possível é a união de todos no espaço nacional e das nações no espaço latino-americano.
Chegou portanto a hora de adotar o que Lula vem afirmando: a
necessidade histórica de cooperação entre os grupos e os interesses, a fim de preservar o máximo
de autonomia política nacional e
de bom desempenho econômico,
visando sempre à superação das
atrozes desigualdades sociais e regionais do Brasil. Na verdade, trata-se de assegurar nada menos do
que a nossa independência e de
avançar nas conquistas sociais.
As políticas de "frente única",
implicando colaboração das classes, cujos interesses são normalmente conflitantes, é sempre instável e quase sempre passageira.
Contudo, em certos momentos
da história de um país pode ser
não apenas possível, mas necessária. Foi o que Lula sentiu e teve a
iniciativa de assumir. É o que devemos aceitar como instrumento
de política interna e externa num
momento grave, sobretudo porque ela parece viável agora, ao
contrário de outras quadras.
Em 1945, por exemplo, ela era
preconizada por um pequeno
grupo de esquerda independente,
A União Democrática Socialista
(UDS), da qual fiz parte e durou
pouco, porque logo ingressamos
na Esquerda Democrática (ED),
então fundada, que em 1947 mudou o nome para Partido Socialista Brasileiro (PSB), fechado em
1965 pela ditadura militar.
O nosso manifesto foi redigido
por Paulo Emilio Salles Gomes,
inspirador do grupo, e sugeria o
caráter transformador que poderia ter a junção dos setores radicais da classe média com o operariado e o campesinato. Mas, naquela altura, a classe média pensava sobretudo no restabelecimento das liberdades políticas suprimidas pela ditadura do Estado
Novo, o operariado era tutelado
pelo Ministério do Trabalho e os
trabalhadores rurais continuavam à margem da nação. O nosso
projeto era utópico.
Hoje a situação é outra. Diversos setores da classe média se radicalizaram politicamente e, mesmo sem politização propriamente
dita, muitos mais estão convencidos da necessidade de lutar para
pôr fim à iniquidade que relega
dezenas de milhões de brasileiros
à miséria, à humilhação, à exclusão. Por sua vez, o operariado superou a fase por assim dizer preparatória da tutela ministerial e
assumiu a iniciativa que lhe permite dialogar de modo firme com
o patronato e manter relações de
paridade política com os outros
setores da sociedade. Finalmente,
o campesinato foi o que mais se
transformou e progrediu. Desde
experiências como a das Ligas
Camponesas dos anos de 1950 até
o combativo Movimento dos
Sem-Terra, o trabalhador rural
brasileiro deixou de ser barro
submisso na mão dos latifundiários para tornar-se força viva e decisiva na vida nacional.
À vista disso, é possível supor
que a nossa utopia de 1945 tenha
se tornado uma possibilidade
real, desde que haja lideranças capazes e verdadeiro sentido social.
Talvez as três forças definidas por
Paulo Emilio possam agora compor uma aliança capaz de mudar a
face do Brasil, não pela violência
revolucionária, mas pela coordenação tática de propósitos e interesses, em diálogo franco.
A vitória de Lula pode ser o começo de uma fase redentora em
na vida política e social brasileira,
se todos nós nos esforçarmos para superar os ângulos parciais em
proveito de um esforço comum, a
partir do qual será possível esboçar-se um Brasil de igualdade e de
liberdade, dentro da democracia
efetiva.
ANTONIO CANDIDO DE MELLO E
SOUZA, 84, é professor emérito da USP
e autor de "Formação da Literatura Brasileira", entre outros
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