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São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 2003

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família

Primeiros colonizadores têm milhões de descendentes espalhados no país


Segundo cálculo de pesquisador, cerca de 15 milhões de brasileiros podem ter um pioneiro de São Paulo como ascendente


JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Quando Salvador Pires foi eleito procurador do Conselho da recém-criada vila de São Paulo, em 1563, menos de mil pessoas habitavam os Campos de Piratininga. Dessas, pouco mais de uma centena era de origem européia. Olhando as cerca de cem casas de taipa e sapé, o novo procurador jamais poderia imaginar que, 14 gerações depois, um descendente seu ocuparia cargo semelhante na mesma Câmara em uma cidade com 10 milhões de habitantes e 3 milhões de domicílios.
A numerosa descendência de Salvador Pires engloba o senador Eduardo Matarazzo Suplicy, embora tão bem escondida entre sobrenomes italianos e franceses que nem o próprio parlamentar desconfiasse. Presidente da Câmara Municipal de São Paulo de 1989 a 1991, Suplicy conhecia os seus antepassados europeus, mas se surpreendeu ao descobrir-se um "quatrocentão".
Como ele, milhões de brasileiros descendem de um dos pioneiros da São Paulo de Piratininga do século 16. A estimativa é do professor emérito da UFRJ e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP, Francisco Antônio Doria. Físico e matemático, Doria investe suas horas vagas em pesquisas genealógicas que já renderam dois livros: "Os Herdeiros do Poder" e "Caramuru e Catarina". Foi quem descobriu os antepassados remotos de Suplicy e de outros poderosos.

Elite emergente
O matemático-genealogista faz um cálculo simples: à média de três filhos sobreviventes por casal, após 15 gerações nascidas no Brasil, apenas um casal de pioneiros pode chegar, em tese, à casa dos 15 milhões de descendentes -espalhados de Minas Gerais ao Rio Grande do Sul, do litoral até os sertões de Mato Grosso e Goiás. Ele desmistifica, assim, o conceito de "quatrocentões" como uma casta reduzida.
O termo, como lembra Maria Luiza Marcílio, professora titular do Departamento de História da USP, foi cunhado no início do século 20 pela tradicional elite paulistana. Visava discriminar os milhares de imigrantes europeus que ensaiavam formar uma nova elite, baseada não na herança da terra, mas, como no caso dos Matarazzo, na indústria, ou, no dos Suplicy, na exportação de café.
A despeito do preconceito, a tradição mameluca, que já misturara portugueses e índios, espanhóis e judeus conversos, degredados e membros da baixa nobreza, acabou integrando as novas levas de italianos, espanhóis, alemães e japoneses. "Não se formaram guetos na cidade. Havia preponderância (como de italianos no Brás), mas a população se mesclava", aponta Marcílio.

Interação social
Filomena Matarazzo Suplicy, 95 anos recém-completados, é a prova de que a resistência começou a ser superada ainda nos primeiros anos do século passado. O casamento de sua mãe, Amália Cintra Ferreira, com Andrea Matarazzo foi um dos primeiros a unir italianos e paulistanos tradicionais. Ela conta que a elite emergente morava na avenida Paulista e em seus arredores. Já as famílias ricas mais antigas tinham seus casarões em Higienópolis e nos Campos Elíseos. A interação social acontecia nas matinês do Cine República, nos chás da tarde da Confeitaria Vienense e nos passeios noturnos pela recém-inaugurada Paulista.
Os almoços das quintas-feiras eram especiais na infância de Filomena. Seu avô, o conde Francisco Matarazzo, fundador do que já foi o maior complexo industrial da América do Sul, levava semanalmente toda a família para uma de suas 365 fábricas. Eram 13 filhos e dezenas de netos e sobrinhos que comiam junto com centenas de operários em tábuas sobrepostas a cavaletes. Como em casa, as conversas eram predominante em italiano, já que o conde privilegiava seus conterrâneos na hora de contratar mão-de-obra.
Se os imigrantes se integravam socialmente, o mesmo não acontecia com os descendentes de escravos. Após a abolição da escravidão, os negros, que chegaram a ser 30% da população da cidade no fim do século 18, tornaram-se muito poucos. Aqueles que deixaram as fazendas não encontraram forma de sobreviver dignamente na cidade, conta Maria Luiza Marcílio, e ficaram restritos aos cortiços e às periferias do sistema.
A discriminação era brutal. "Não eram aceitos nas escolas nem nas indústrias. Ficaram relegados às profissões mais humildes, como a limpeza urbana e as funções domésticas", afirma a historiadora. "E os que não encontravam emprego tiveram que se dedicar à mendicância e ao crime" -o que só fez reforçar o preconceito.
Se as eventuais raízes negras dos "quatrocentões" foram apagadas, a mescla de genes tupiniquins e europeus ficou registrada em documentos como as atas da Câmara, inventários e testamentos. Tome-se o velho procurador Salvador Pires. Nascido no Porto (Portugal), emigrou para São Vicente e acabou se fixando em São Paulo. Ganhava a vida como marceneiro e fez, em 1575, as portas e móveis da primeira Casa da Câmara.
Um de seus filhos herdou do pai o nome e uma sesmaria junto ao rio Tietê, onde cultivava uvas e produzia vinho. Este Salvador Pires, o moço, casou duas vezes, uma delas com Mécia Fernandes. A despeito do nome cristão, sua mulher era mais conhecida por Meciaçu -apelido tupi que indica ser ela bisneta do cacique Piquerobi da aldeia do Ururaí (o distrito de São Miguel Paulista), e ter um tamanho avantajado ("açu" em tupi significa "grande").
Como lembra Francisco Doria, embora o português fosse o idioma oficial e registrado pelos documentos, o tupi, na sua forma adaptada pelos mamelucos e chamada de nhengatu, foi a língua da intimidade de quase todos os paulistas até o final do século 17.
Nos dois séculos seguintes, uma parte dos descendentes de Salvador Pires mudou-se para cada vez mais longe da vila de São Paulo. Alguns acabaram em Minas Gerais durante a febre do ouro no século 18. Não foram os únicos. Até 1870, quando a conjunção do café e das ferrovias voltaria a atrair novos habitantes, o planalto paulistano foi um pólo de emigração. Nos cerca de 200 anos entre 1660 e 1854, a população da cidade cresceu somente de 6.000 para 32 mil habitantes.
Apenas com a chegada das levas de europeus, a partir da década de 1880, a cidade romperia os limites da antiga colina escolhida pelos jesuítas para construir seu colégio e começaria a ocupar as áreas além dos rios Tamanduateí e Anhangabaú. O crescimento econômico atraiu também brasileiros de outras regiões, inclusive descendentes de Salvador Pires.
No século 20, a volta dos emigrados e, principalmente, a chegada de novos imigrantes proporcionaria a São Paulo o maior crescimento entre todas as grandes cidades do mundo.
Nessas levas de imigrantes brasileiros vieram os Suplicy, cujo primeiro ancestral se radicara no Paraná, e os Smith de Vasconcellos, que emigraram do Ceará. As duas famílias se uniriam no casamento do futuro senador Eduardo Matarazzo Suplicy com a futura prefeita Marta Teresa Smith de Vasconcellos. Seus filhos, dos quais o mais famoso é o cantor o Supla, formariam a 15ª geração de paulistanos.


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